São Paulo, terça-feira, 24 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Niemeyer, cidadão de São Paulo

NABIL BONDUKI

São Paulo ainda não havia prestado a Oscar Niemeyer, o mais importante arquiteto vivo do mundo, uma homenagem à sua altura. Por isso, propus a concessão do título de cidadão paulistano, que ocorre hoje, em sessão solene da Câmara Municipal no Memorial da América Latina.
Ao lado de diversas entidades, transformamos o ato num momento de reflexão sobre sua contribuição para a capital paulista e para o país. Não existe melhor forma de homenagear esse socialista, que nunca perdeu a esperança de viver numa sociedade mais justa e em cidades mais belas, do que mostrando como seus projetos valorizaram a cidade, criando espaços democráticos que podem ser percorridos por todos.
Niemeyer é o último remanescente de uma geração de intelectuais que ajudou a mudar o país e a construir a identidade nacional, sem perder a universalidade. Homens como Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Candido Portinari, Villa-Lobos e Lúcio Costa.
As vanguardas do século 20 estabeleceram uma forte relação com projetos políticos, sem perder a dimensão artística. A ebulição cultural e a revolução no modo de vida se relacionaram com utopias libertárias, na crença de que as injustiças seriam superadas por uma sociedade igualitária e solidária. No Brasil, com a Revolução de 1930, essa perspectiva tomou rumos próprios: construir a identidade nacional e modernizar o país. A arquitetura moderna cumpriu um papel estratégico para esse projeto, e a presença da arrojada obra de Niemeyer foi essencial. Ele buscou na paisagem e na cultura brasileiras elementos de uma plasticidade que escasseava no racionalismo europeu, dando uma feição nacional ao modernismo. O resultado foi um original desenvolvimento dos princípios arquitetônicos da vanguarda européia, utilizando o concreto no limite de suas possibilidades.
Como sua geração, Niemeyer participou do esforço desenvolvimentista que antecedeu o golpe de 1964, gerando um dos mais vigorosos processos de industrialização e urbanização do século 20. Como síntese de tal esforço, Brasília tornou-se um marco.


As obras de Niemeyer são oásis para uma população que vive segregada em territórios desprovidos de identidade


O arquiteto soube associar a atividade profissional e a postura política. Mais do que isso: assumiu publicamente sua ideologia e opção partidária, mesmo quando os comunistas sofreram repressão. Solidário com seus companheiros perseguidos, nunca perdeu a esperança em mudanças estruturais. Foi exilado e, ampliando sua projeção internacional, participou da luta pela democracia. Se hoje podemos eleger um presidente operário, isso se deve a uma luta coletiva de que intelectuais como Niemeyer fizeram parte. Sua importância no cenário político e cultural já justificaria plenamente a cidadania paulistana. Mas sua destacada contribuição para São Paulo, na comemoração dos 450 anos, valoriza ainda mais a homenagem.
Seus primeiros projetos na capital paulista são contemporâneos ao quarto centenário, em plena euforia do progresso. O parque Ibirapuera e os edifícios projetados para o centro da cidade, como o Copan, são respostas coerentes para uma metrópole em crescimento, que requeria alternativas habitacionais modernas e espaços para o lazer e a cultura. O conjunto arquitetônico do parque consolidou o caráter público de uma área que havia sido mutilada por apropriações privadas. Niemeyer criou, com a marquise sinuosa, uma inédita relação entre os edifícios culturais e a área livre. Cinqüenta anos depois, graças à determinação da prefeita Marta Suplicy, a construção do teatro permitirá completar o que foi projetado.
Já o Copan representou uma proposta moderna para conter o exponencial crescimento da metrópole: intensificar a ocupação do solo para garantir, em contrapartida, espaços livres. Num único edifício, funciona uma cidade vertical com habitações de diferentes dimensões, comércio, serviços e lazer, reduzindo a distância entre moradia e emprego. Nos anos 80, o arquiteto voltou a se debruçar sobre São Paulo, que, longe da euforia dos 50, vivia uma crise de emprego e de qualidade de vida. Foi chamado para pensar soluções para áreas desestruturadas, que haviam ficado abandonadas na avassaladora expansão horizontal.
Aproveitando áreas municipais, Niemeyer propôs reorganizar o entorno do rio Tietê, removendo as marginais e implantando parque, centro administrativo e habitações. Buscava-se requalificar a região com usos públicos e ampliar a permeabilidade. Lamentavelmente o plano foi abandonado e esses locais foram ocupados de forma desordenada. No Memorial da América Latina, ele criou um belo conjunto urbano que deveria ter impulsionado a transformação da região -que não ocorreu pela ausência de ações coordenadas.
Revisitar a aventura de Niemeyer na paulicéia revela estratégias previstas no Plano Diretor recentemente aprovado, como a implantação de parques nos fundos de vale, a intersecção entre o espaço público e o privado e a criação de pólos de centralidade para requalificar a orla ferroviária. As propostas citadas atestam o caráter universal e permanente da sua contribuição.
As obras de Niemeyer são oásis para uma população que vive segregada em territórios desprovidos de identidade, sem qualidade urbanística. Nos 450 anos de São Paulo, revê-las é uma experiência que nos leva a acreditar que uma outra cidade é possível.

Nabil Georges Bonduki, 49, arquiteto e urbanista, vereador, pelo PT, em São Paulo, é candidato à reeleição.


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