São Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Sacrifício do intelecto
ROBERTO ROMANO
Graças às críticas do cardeal Passionei, o documento não foi publicado. O mundo católico ainda não era refém da burocracia curial. Mas logo vieram a "Quanta Cura" e o "Syllabus", que proibiram o pensamento autônomo e denunciaram a "liberdade de perdição". Para fugir daqueles pecados, só o sacrifício do intelecto. Estavam prontas as bases para o reinado do cardeal Ratzinger e de João Paulo 2º. No Estado, desde o Termidor, passando pela censura napoleônica e chegando ao totalitarismo do século 20, a norma foi a renúncia ao intelecto pessoal. E surgiu a cultura dos militantes com a sua lógica ensandecida. Tal imposição une-se à exigência do silêncio obsequioso. Immanuel Kant sofreu a censura e, segundo Domenico Losurdo, internalizou-a. Ao contrário de Espinosa, o "chinês de Konigsberg" valorizava a cátedra e já estava imbuído do espírito burocrático universitário. Liberdade, para ele, apenas fora do mundo oficial. Lyssenko foi um caso espetacular de sacrifício do intelecto somado ao silêncio obsequioso dos cientistas soviéticos e ocidentais que ajudaram Stálin. Sem os dois elementos, muito certamente a política socialista conheceria outros rumos. Mas a tolice do governante foi aplaudida pelos acadêmicos, o que os tornou mais culpados do que o próprio autocrata. No Brasil, a crítica recebe veto perene. A tradição oficialista ordena que as espinhas se curvem, sempre que um novo inquilino se instala no poder. A crítica e a oposição constituem mau gosto e devem ser banidas dos campi e dos laboratórios. Quando Fernando Henrique presidia o país, escrevi, nesta coluna, um artigo intitulado "O PT e a dignidade da oposição". Nele, criticava autoridades que ironizavam aquele partido. Hoje, noto que a mente dos que ocupam o poder é a mesma. A forma é petista, mas o conteúdo tem o sabor do oficialismo. Na época, a imprensa e os intelectuais eram valiosos para o PT. Hoje, com verbas imensas e Duda Mendonça, quem no governo precisa de crítica? Apagar o que se produziu é o primeiro passo para a boa acolhida entre os cortesãos. E pobre de quem ergue a espinha e a face! Enquanto essa mentalidade imperar entre políticos e universitários brasileiros, vários Lyssenko serão paridos entre nós. Pensamento e ciência são riquezas que não podem ser alienadas, por mais sublime que seja a "causa" alegada. O respeito pela diferença integra a democracia. Quem recusa esse ponto, adestra-se para aceitar com louvores os piores golpes contra os cidadãos. Silêncios obsequiosos e sacrifício do intelecto geram apenas servilismos, como assistimos em nosso país desde o século 16. Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo), entre outras obras. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Giovanni Guido Cerri: Medicina brasileira e médicos estrangeiros Índice |
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