São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

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Degradação

Conspiradores se dizem vítimas de conspiração, mafiosos acusam quem os indicia, intelectuais militam na mentira

NADA MAIS sintomático -sintomático da degradação de um partido antes identificado com a ética na política- do que o argumento petista segundo o qual o chamado "escândalo do dossiê" visaria a conturbar o pleno transcurso do calendário eleitoral.
Flagrados de novo em ato explícito de delinqüência, setores próximos ao presidente Lula reagem com um desgastado repertório de absurdos. Confiantes no sucesso da candidatura petista e na credulidade da população, sustentam que o presidente da República "só teria a perder" com a estúpida trama que a Polícia Federal veio a revelar. Tudo teria sido uma tentativa de "melar" as eleições presidenciais.
Não é verdade. De Freud Godoy a Jorge Lorenzetti, de Jorge Lorenzetti a Ricardo Berzoini, o que se viu foi o envolvimento de nomes historicamente ligados a Lula e à hierarquia petista numa trama destinada a favorecer a candidatura de Aloizio Mercadante ao governo de São Paulo.
Caso o esquema desse certo, seriam José Serra, adversário de Mercadante, e Barjas Negri, seu sucessor no Ministério da Saúde do governo Fernando Henrique, as figuras a monopolizar o noticiário em torno do escândalo dos sanguessugas. Se houver, as responsabilidades de ambos terão de ser identificadas com máximo e idêntico rigor.
Mas o esquema não deu certo. O malogro resultou em infortúnio para o PT e seu candidato à Presidência. Revelou-se mais um ato de violência intimidatória -o mais grave, sem dúvida- a cobrir de vergonha a legenda do Partido dos Trabalhadores.
Compra-se, com dinheiro sujo, um dossiê capaz de incriminar oposicionistas. Após o flagrante policial, jorram lágrimas de crocodilo. Conspiradores sem escrúpulo se dizem vítimas de conspiração. Mafiosos acusam quem os indicia. Intelectuais se tornam militantes da mentira. Como nos tempos de Stálin, setores de esquerda se esfalfam em condenar os que não ficam cegos aos desmandos do tirano.
Lula não é nenhum tirano. Mas, se ele próprio é levado a condenar a felonia de seus companheiros, sua candidatura representa a tolerância com toda uma quadrilha.
Uma quadrilha que vê, na ilegalidade, a volta ao charme romântico de uma época em que havia méritos em ser clandestino. Uma quadrilha que aproveita, do messianismo ideológico de outros tempos, os argumentos de que a elite quer apeá-la do poder. Uma quadrilha que, por fidelidade ao chefe, por submissão ao chefe, imagina agradá-lo quando mergulha na prepotência, no autoritarismo, na chantagem e na corrupção.
Talvez o chefe goste disso. Talvez premie, num futuro mandato, asseclas menos desastrados.
Tudo depende do aval que lhe derem as urnas. Esta Folha mantém, como sempre, o compromisso de apartidarismo que está entre as razões de ser de sua atividade jornalística.
Nas eleições que opuseram Fernando Collor de Mello, de um lado, e Luiz Inácio Lula da Silva, de outro, este jornal não tomou partido. Os asseclas de Collor promoveram uma patética invasão da Folha uma semana depois da posse. Os asseclas de Lula por ora se limitam a reclamar de supostas malevolências oposicionistas.
Não há malevolência, porém, diante do fato consumado. Não há inocência tampouco. No âmago do governo Lula, age uma organização disposta a quase tudo para se manter no poder. De seu sucesso -ou não- depende o futuro da democracia brasileira.


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