São Paulo, segunda-feira, 24 de setembro de 2007

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O dia em que o Corinthians quase acabou

MARLENE MATHEUS


O Corinthians transparece um pedaço deste Brasil incômodo, que enterrou a esperança e estilhaçou a própria estrela


AINDA ME lembro dos olhos gananciosos daquele homem. Da sua fala arrogante e cheia de um discurso pouco plausível. Diante de um conselho empolgado, eu, o Vicente e mais meia dúzia de apaixonados corintianos fomos colocados para fora. Terminava ali um período que cismavam chamar de ditatorial.
Sim, o Vicente [Matheus] não escondia seu gosto pelo poder, mas também não se deixava perpetuar no trono sem o aval de seus súditos -por sinal, essa era a parte de que mais se gabava: ganhar com muitos votos de vantagem. E assim acontecia a cada dois anos, sem mudanças estatutárias nem desrespeito ao clube do coração.
Talvez isso explique muitas coisas, entre as quais o número de associados que circulava pelas dependências do Parque São Jorge.
O senhor que encerrou esse momento de certa tranqüilidade, de cofres fartos e de títulos suados hoje ilustra as páginas da vergonha desse gigante quase centenário.
Ao lado de Matheus, compartilhei 30 anos de um amor que aprendi a dividir sem jamais questionar. Tive a honra de ser eleita a primeira presidente corintiana.
Mas nem tudo foram flores. Escorraçados pelo conselho ávido pela modernidade pregada por seu Alberto Dualib, deixamos o cotidiano alvinegro para amargar um doloroso exílio. Lutamos na Justiça pelo seu afastamento, cujo currículo, já naquela época, era de fazer corar até os mais escolados. Perdi o Vicente no meio da batalha e, sozinha, com as portas do clube fechadas para as minhas recordações, refugiei-me na minha própria casa, convertida numa espécie de Corinthians democrático.
Tive que entender que a vida é feita de política -e agora compreendo a fala do presidente Lula ao justificar a absolvição do senador Renan Calheiros. "A política não é coisa para amigos." Pois é, parece que o mundo é movido a Maquiavel -e seus príncipes pouco amados.
Conchavos, acordos, cartas marcadas... O Corinthians transparece um pedaço deste Brasil incômodo, que enterrou a esperança e estilhaçou a própria estrela.
Na noite em que o Conselho de Orientação (Cori) se reuniu para sacramentar o destino do Corinthians, ouvi outro ex-presidente dizer que "a parceria era um mal necessário". Ou seja, o time estava na lama.
Ainda assim, opositora ferrenha da administração Dualib, me mantive contra, clamando pelo bom senso dos demais presentes recostados em suas belas cadeiras. Fui voz solitária, agüentei piadas da "tropa de choque" pró-Dualib. Deixei a sessão abatida, vencida, humilhada como corintiana.
Chorei por assistir à triste cena, arquitetada por magistrados renomados, pelos caciques de uma política capenga e servil -olha ela aí de novo- que usam e abusam do símbolo que carregamos no peito com tanto orgulho.
Tempos depois, procurada pelo responsável pela parceria, Kia Joorabchian, fui informada sobre as comissões abusivas e as negociatas que davam mostras de um enterro prematuro. Acreditei que a vaidade levaria Alberto Dualib para a cadeia -com seus seguidores.
Nesse tempo todo, nunca tive acesso aos documentos que selaram o acordo entre o Corinthians e a MSI.
Soube tanto quanto os milhares de corintianos que assistem das arquibancadas ao destino do seu time favorito. Fui para a Inglaterra recentemente. Nem nessa ocasião a tal sociedade foi esclarecida.
Foram 14 anos de uma espera inexplicável e de uma dor que não consigo entender. Respiro aliviada por presenciar a queda de Dualib, mas sinto calafrios só de pensar que, por ali, se mudam apenas as peças e o jogo segue idêntico.
Agora é hora de descobrir quem são os abnegados. Em vez de novos estatutos, que são favoráveis a alguns, por que não resgatar o primeiro regulamento do Corinthians, feito para contemplar o povo, por uma gente simples e devota a um sentimento de igualdade?
O Corinthians não pertence aos 400 conselheiros -e aí preciso me valer da representatividade do Congresso Nacional, que tapou os ouvidos para colocar os benefícios pessoais em primeiro plano.
Como um reflexo do poder que nos assola, o Corinthians peleja para sobreviver. Mas, na contramão dos escândalos, tenho certeza de que lhe sobra dignidade, afinal, como todo bom corintiano, sem sofrimento não se vence a batalha.

MARLENE MATHEUS é membro do Conselho Deliberativo do Corinthians e ex-presidente do clube (1991-1993). É autora do livro "Matheus, o Senhor Corinthians".
marlene@e-pauta.com.br


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