São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 2000

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A liberdade e a grande revolução


O exercício da liberdade impõe limitações. No caso da nossa cultura, as que decorrem do direito natural


JORGE BOAVENTURA

Em artigo anterior, aqui mesmo publicado, chegamos a mencionar que os mentores da ordem, ou desordem, em que, a cada dia mais claramente, vem mergulhando este mundo profundamente contraditório em que estamos vivendo, nos primórdios do processo que até aqui nos conduziu, haviam estabelecido a confusão no que tange ao problema da liberdade. E prometemos que, permitindo Deus, voltaríamos ao assunto.
É o que buscaremos fazer agora, e não para construir devaneios inúteis, mas para ferir problema que, segundo nos parece, está no próprio âmago de questões da maior gravidade como a que, desde agora, nos permitimos colocar: em nosso entendimento, examinada a questão na profundidade adequada, de fato, existe uma única, profunda e grande revolução no bojo da cultura e da civilização ocidentais a que pertencemos.
A essa revolução, se quisermos descrevê-la de modo figurado e sintético, diremos que é a que nos tem conduzido do fundamentalismo cristão dos primeiros tempos às "marchas do orgulho gay", realizadas quase simultaneamente em várias das principais metrópoles do mundo, para terminar -teria sido casualmente?- na maior de todas, realizada, precisamente em Roma e no ano do jubileu do cristianismo.
Nem pensem os leitores que, a despeito da profundidade abissal das nossas limitações, que buscamos ter sempre presente, sobretudo quando nos dirigimos aos que nos deferem a honra da sua atenção, ela seria capaz de nos levar, em assunto da dramática gravidade, que estamos buscando submeter à consideração dos que nos leiam, a confundir um aspecto, no domínio de opções sexuais, com a questão maior que é a que se refere à deturpação do significado da liberdade.
De fato, a questão de fundo está na confusão entre liberdade como conceito, no plano, digamos, metafísico, em que o seu atributo caracterizador é o de não sofrer restrições, e liberdade como prática, por parte de seres, como somos todos, sem nenhuma exceção e para usar expressões do poeta, "misturas de lama e de luz".
Em tal terreno, é óbvio, há que colocar limites, os quais, na medida em que somos racionais, devem visar sempre não a opressão de um ou de alguns poucos sobre os demais, mas a realização, o mais perfeita e o melhor possível, do bem comum. E é essa promoção do bem comum que se torna difícil quando no íntimo de todos defrontam-se os apetites imoderados que vêm de nossa natureza animal, com as exigências que nos apresenta o espírito, aquela mesma luta que o próprio "apóstolo das gentes" assinalou existir em seu íntimo, ao lamentar-se dizendo que nem sempre podia atender ao que seu espírito aspirava, em face do clamor do que os seus membros exigiam.
Desse clamor fazem parte, entre outros, os que se referem à ambição pela posse de bens materiais, à avareza e à satisfação, por exemplo, da gula, que é deturpação do apetite, ou da libidinagem em suas múltiplas manifestações, deturpações do amor. Essas ambições e deturpações é que, nitidamente, a visão ética do cristianismo visa disciplinar e conter.
Por isso é que, quando essa ética manifestou-se de modo mais radical, nos primeiros tempos do cristianismo, contrariou os que já estavam submissos àquelas ambições e deturpações, o que explica, aliás, a desinformação que ao longo de séculos tem taxado a Idade Média como "Idade das Trevas", com a qual, pasmem os leitores que ainda não o saibam, não concorda nenhum medievalista. É que eles, entre outras coisas, sabem que a idéia de universidade nasceu no medievo e que todas as grandes e tradicionais universidades de hoje nasceram naquele período. Entre elas a Sorbonne, Oxford, Heidelberg, Cracóvia, Salamanca, Pádua etc.
O exercício da liberdade impõe, portanto, limitações. No caso da nossa cultura, as que decorrem do direito natural, impressas na natureza das coisas como expressão da vontade do Criador. Os escravos da matéria, porém -nunca será demais repetir-, após longo processo conseguiram, na "Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos", em 1791, na França, colocar em seu artigo 6º: "A lei é a expressão da vontade geral". E mais adiante, "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo a não ser em virtude de lei".
Como, porém, não há como aferir a vontade geral, impõe-se o princípio da sua representação, como já temos dito, na pessoa dos legisladores e, assim, desvincula-se o ordenamento social de qualquer referencial fixo, de conteúdo axiológico, passando tudo a depender de maiorias eventuais e transitórias, facilmente influenciáveis e controláveis.
O leitor, inteligente, concluirá sobre a gravidade do exposto, ao qual pretendemos voltar, se Deus quiser, que o tema é, além de grave, vastíssimo.


Jorge Boaventura de Souza e Silva, 79, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da ESG (Escola Superior de Guerra). Home page: www.jorgeboaventura.jor.br, e-mail: boaventura@jorgeboaventura.jor.br



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