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MÁRIO MAGALHÃES
O almirante negro
NADA COMO SENTENÇAS e
pitacos sobre o passado para revelar cabeças e miolos
do presente. Por dever de ofício,
horas antes da inauguração da estátua do marinheiro de primeira
classe João Cândido Felisberto, no
dia 20 de novembro, indaguei à
Marinha sua opinião acerca da homenagem.
O presidente da República participava do ato diante da baía de
Guanabara, a mesma onde em 1910
mais de 2.000 marinheiros -boa
parte negra- se sublevaram em
quatro navios de guerra contra os
castigos físicos que perduravam na
Força, decorridos 22 anos da Abolição.
Foram mortos quatro oficiais a
bordo e duas crianças em terra,
quando a então capital foi bombardeada pelos rebeldes. O episódio se
tornaria célebre como a Revolta da
Chibata. A refrega foi determinante para o ocaso das atrocidades herdadas da escravidão.
Líder do movimento, João Cândido acabaria pouco tempo depois
em cana, em uma ilhota junto com
17 companheiros. Só ele e um outro
saíram vivos. O velho marinheiro
morreria pobre em 1969. Aldir
Blanc e João Bosco dedicaram-lhe
um samba de antologia no qual foi
aclamado como "Almirante Negro"
-questões paralelas impuseram a
mudança da letra para "Navegante
Negro".
Noventa e oito anos após o levante, o Centro de Comunicação
Social da Marinha respondeu que
não identifica "heroísmo nas ações
daquele movimento. Entretanto,
nada tem a opor à colocação da estátua, desde que haja o cuidado de
evitar inserções ofensivas à Força e
às vítimas dos amotinados".
Por inserções ofensivas talvez se
entenda a recusa ao hábito de açoitar o tronco dos marinheiros como
o dos escravos nos pelourinhos décadas antes. Ainda hoje, a Marinha
do Brasil ensina: tratou-se de "um
triste episódio da história do país"
-a Revolta da Chibata, não o cotidiano de corpos golpeados.
A Marinha, que em 1964 conheceu de perto a indisciplina militar,
melhor faria se cultivasse a cautela.
Enquanto Lula exaltava João Cândido e os revoltosos, a Força os
condenava. Ao arrolar as atribuições do presidente, a Constituição
obriga-o a "exercer o comando supremo das Forças Armadas". Chefe
de um governo pusilânime diante
dos militares, Lula fez que não ouviu a insubordinação.
Pior do que peitar o comandante
das Forças Armadas -e as bases do
Estado Democrático de Direito- é
a sobrevivência de um pensamento
que justifica as chibatadas, ao demonizar quem contra elas se insurgiu.
A história, contudo, é implacável: enquanto a Marinha mantém a
pregação anacrônica, João Cândido, feito estátua, contempla as
águas da Guanabara onde um dia
combateu o bom combate.
MÁRIO MAGALHÃES, repórter especial da Folha, escreve hoje excepcionalmente neste espaço.
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