São Paulo, quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Vale-cultura, na mão do trabalhador

ROBERTO MUYLAERT


O vale-cultura é mais democrático, com potencial de uso efetivo por quem precisa, cartão magnético como se fosse vale-refeição

A LEI Rouanet dá incentivos fiscais a empresas. Projeto do então ministro Sérgio Paulo Rouanet, lançado em 1991, criou forte concentração de renda também na área cultural.
Assim, 80% dos recursos aplicados no ano passado contemplaram o Sudeste, com 60% para Rio de Janeiro e São Paulo. Do total de investimentos, 50% foram destinados a apenas 3% dos autores de projetos.
Muitas áreas da cultura nunca tiveram acesso à Lei Rouanet. Em compensação, espetáculos de roqueiros famosos já foram contemplados com renúncia fiscal paga pela população como um todo.
A concentração geográfica durante o período de vigência da atual lei de incentivos impressiona. Foram apresentados, no Sudeste, 23 mil projetos, e R$ 3 bilhões foram captados. No Sul, 7.000 projetos e R$ 477 mil captados.
No Nordeste, respectivamente, 4.700 e R$ 293,5 mil. No Centro-Oeste, 3.000 e R$ 145 mil. Na região Norte, 786 projetos e R$ 40 milhões.
Quanto à concentração econômica, alguns dos campeões de captação em 2008 foram o Instituto Itaú Cultural (R$ 29 milhões), a Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira (R$ 14 milhões), a TV Cultura (R$ 10 milhões), a Orquestra Sinfônica de São Paulo (R$ 8,2 milhões). Instituições como Estação Língua Portuguesa, Instituto Tomie Ohtake e MAM, de São Paulo, também demonstram dependência vital da renúncia fiscal.
Por outro lado, entre 2002 e 2008, a Petrobras respondeu por R$ 1 bilhão de patrocínio cultural, seguida da Eletrobrás (R$ 204 milhões), do Banco do Brasil (R$ 139 milhões) e do BNDES (R$ 75 milhões).
Como assinala Yacoff Sarcovas, produtor cultural e esclarecido conhecedor das leis de incentivo fiscal, os projetos culturais não são pagos pelos orçamentos das empresas privadas, mas pelas deduções de impostos, com patrocínios de estatais.
Breve elas serão alteradas por nova lei em que as empresas precisarão colocar a mão no bolso para financiar em parte suas iniciativas culturais, a partir de critérios públicos para avaliação dos projetos apresentados.
Para que essa visão se altere, os empresários, assim como a população, precisam ser levados pela mão para entender a razão pela qual cultura é importante. Muito ocupados, eles em geral não estão muito ligados aos eventos culturais nem cultivam o hábito da leitura.
A população brasileira também não se destaca pela fruição cultural: 20% só assistem à TV aberta (novela também é arte cênica), 8% vão ao museu, 13% ao cinema, 17% compram livros.
Em 1995, escrevi um livro sobre marketing cultural, hoje superado. Ao fazer palestras pelo Brasil, em lançamentos, senti a aflição de potenciais produtores culturais locais ao descobrir que, após a aprovação do seu projeto, começava a verdadeira batalha, sem possibilidade de sucesso: a de conseguir patrocinador.
Isso porque o pequeno produtor só tem acesso ao nível gerencial com poder apenas para dizer não, o que ele só descobre após infinitas idas e vindas às empresas, sem sucesso.
Claro que os detentores de grandes eventos têm acesso aos altos empresários. Mais fácil ainda é o patrocínio das instituições criadas pela própria empresa, em que os recursos de incentivos fiscais saem de um bolso da calça para entrar no outro, com o governo pagando 100% da conta.
Nada contra equipamentos culturais gerados com tais recursos, ao contrário, eles servem muito bem à população. O que dá pena é a ilusão seguida de decepção de centenas de pequenos produtores, que, a essa altura, nem tentam mais o patrocínio.
O vale-cultura é mais democrático, com potencial de uso efetivo por quem precisa, cartão magnético como se fosse vale-refeição.
São R$ 7 bilhões anuais de renúncia fiscal possível beneficiando os trabalhadores de empresas cadastradas, com vales-cultura de R$ 50 por mês.
Só que os segmentos culturais previstos na primeira redação do vale-cultura contemplavam apenas sessões de cinema, teatro, compras de livros, CDs e DVDs, com concentração elitista nas cidades mais ricas do país, onde a demanda acabaria sendo muito superior à oferta.
O texto aprovado com emenda do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) incluiu revistas. Trata-se do único bem de consumo (além de jornais) que pode ser consumido em 30 mil bancas de cidades grandes e pequenas de todo o país, ofertando 4.000 títulos diferentes e 400 milhões de exemplares impressos por ano.
Agora, sim, um vale-cultura democrático, como presente de Natal para a população brasileira.


ROBERTO MUYLAERT , 74, jornalista, é editor, escritor e presidente da Aner (Associação Nacional dos Editores de Revistas). Foi presidente da TV Cultura de São Paulo (1986 a 1995) e ministro-chefe da Secretaria da Comunicação Social (1995, governo FHC).

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