|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Terra e demônios da garoa
SÃO PAULO - Anos atrás, parecia
mais fácil chamar São Paulo de "terra da garoa". Daí vêm os Demônios
da Garoa, grupo dos anos 1940, que
se consagraria interpretando os
sambas de Adoniran Barbosa.
O autor do "Trem das Onze" resistiu ao tempo, mas "terra da garoa" há muito deixou de ser só um
apelido carinhoso. Diante da evidência de que a cidade foi derrotada
pelas águas, o velho epíteto passa
hoje por piada de mau gosto.
Repare na anomalia da situação.
O Datafolha fez ao paulistano a seguinte pergunta: entre os problemas da cidade, qual deveria ser solucionado com prioridade? A resposta de 29%: as enchentes. Em segundo lugar, a falta de médicos e de
hospitais públicos -com 13%.
Mas não vivemos em Veneza.
Ainda não adotamos as gôndolas
como meio de transporte. Os canais
navegáveis do aprazível Jardim
Pantanal ainda não foram descobertos pelo turismo. São Paulo
-vale lembrar- não está no nível
do mar. O resultado da pesquisa é a
confissão coletiva de um colapso
urbano, de uma tragédia histórica
ainda não assimilada inteiramente.
Ou não parece muito, muito estranho que, nessa cidade complexa
e de tantas mazelas, as enchentes
sejam citadas como maior problema por quase um terço do povo? Isso não significa, é claro, que outras
carências estejam equacionadas.
Sabemos que não. O trânsito inviável, a violência das ruas, as condições precárias da saúde pública, a
falta de moradia decente -a lista é
vasta e nos afasta da vida civilizada.
Há regiões da cidade cujo IDH
(índice de desenvolvimento humano) é equiparável ao da Dinamarca;
e há outras, bem mais numerosas,
na periferia leste, em que o IDH é
inferior ao de países africanos.
É óbvio que o resultado do Datafolha está associado à época do ano.
O problema não é esse, mas o inverso: findo o verão, esquecemos os
traumas da chuva com rapidez espantosa. A capacidade de adaptação
ao absurdo é, como Adoniran, um
patrimônio da terra da garoa.
Texto Anterior: Editoriais: Cartão esquecido
Próximo Texto: Brasília - Fernando Rodrigues: Opacidade na política Índice
|