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São Paulo, terça-feira, 25 de janeiro de 2011

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"Sãão Pauulooo!"

FAUSTO MARTIN DE SANCTIS

Criar na cidade um museu indigenista cumpriria a obrigação legal de valorizar o patrimônio cultural, uma dívida que ainda não foi paga


Abordagens de nossa cidade têm contemplado questões como diversidade, modernidade, generosidade, requinte, violência e grandeza. Mas uma realidade é pouco observada. Falo de nossa raiz, esfumaçada por parte da elite paulistana, que vê no resquício tupiniquim algo que envergonha.
Nossas comunidades indígenas desaldeadas só são retratadas, e quando o são, em poucas escolas. É possível alfabetizar crianças em guarani, mesmo alijadas de seu círculo comunitário, como as que moram em conjuntos habitacionais ou favelas. Uma educação bilíngue.
O que se ensina e aprende são costumes que felizmente já estão em nós. E se estão, a ponto de interferir em nosso modo de viver e ver as coisas, é porque passaram a fazer parte de nós.
O resgate histórico de nossa cidade passa por olhar, coletivamente, o ambiente urbano. Realiza-se, a partir de nossos antepassados, a árvore do que será. Ora, a era atual representa o fruto. A simbiose do tempo nos persegue, em equação que conserva um todo. Um corpo.
Estamos presentes no Real Parque, no Capão Redondo, no Jardim Elba, em Paraisópolis, no Grajaú, no Jardim das Palmas, na Sônia Maria e no Jardim Irene (pankararu).
Também no pico do Jaraguá (jaraguá-ytu), em Parelheiros (guaranis), em Guaianases e em Itaquera (guaianás). Mas, aqui, valeria o ditado de raiz tupi "cada macaco no seu galho"?
E o que poderíamos dizer do encontro da índia Bartira e de João Ramalho, de cujos nove filhos surgiram a matriz de Piratininga (nossa cidade em tupi-guarani)?
As nossas tão invocadas simplicidade e generosidade teriam raiz no ato dos guaianás, que, após um naufrágio em 1513, permitiram a João Ramalho que com eles convivesse e que se casasse com a filha do chefe festeiro Tibiriçá?
José de Anchieta aprendeu com eles a língua tupi-guarani, língua oficial brasileira até o final do século 17. Falada em São Paulo até o século 19! Paulista não pronuncia o "r" no final das palavras. Jacaré, macaco, ipê, piracema, tantas as influências tupis-guaranis.
A criação em nossa cidade de um museu indigenista, técnico, tecnológico e interativo alimentaria nossa autoestima e cumpriria obrigação constitucional e legal, também moral, de valorizar o patrimônio cultural. Dívida ainda não paga.
O museu indígena na capital consagraria, apenas por sua presença, a nossa história. Moema, Ibirapuera, Guaianases, Mooca, Itaquera, Morumbi, Mandaqui, Tatuapé... Não se trata, pois, de segregar, mas de agregar.
Formação é indissociável. Melhor se considerarmos o que somos-fomos. Somos-fomos bons quando vivos em nós mesmos. Resgate de nossa crença, da força transformadora do todo.
E não venham com mesquinharias. A reconstrução de nossa rica história merece um museu à nossa altura: à proporção de nossa generosidade e tolerância, ainda que com as consequências dessas heranças, que nos fazem, ao mesmo tempo, reféns e desfrutadores.
Também caberia a reflexão da educação indígena em nossas escolas. Que não mais nos envergonhe o tupi, porque "tupi or not tupi", há um século, "was the question". Saudades de Oswald de Andrade...

FAUSTO MARTIN DE SANCTIS é juiz federal em São Paulo e escritor.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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