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São Paulo faz anos
BORIS FAUSTO
Não se fala mal de alguém no dia de
seu aniversário. Menos ainda se a aniversariante é uma velha senhora, uma
cidade que completa 400 e tantos
anos.
Porém não é fácil cumprir essa regra
de bom-tom. Quando se tenta explorar o lado positivo, o negativo aparece
dominante e avassalador, atingindo
-o que é pior- muito desigualmente os habitantes de São Paulo. Qualquer paulistano desfia uma lista de
críticas à violência endêmica, ao
transporte coletivo precário, ao trânsito insuportável, à poluição, mas, citando um exemplo extremo, uma coisa é viver no Jardim Europa e outra
acampar no Jardim Ângela.
Quem sempre viveu na cidade, ao
longo de várias décadas, suporta penosamente o terremoto produzido pelos especuladores imobiliários, com a
conivência do poder público. A avenida Paulista, por exemplo, parece, aos
olhos dos mais jovens, uma grande
artéria, pontilhada de bancos e de lojas de "fast food", comparável à
Quinta Avenida nova-iorquina, em
uma ótica otimista. Para mim, ela é
um amontoado arquitetônico sem
graça, que sepultou as mansões do período de auge do café e da nascente
indústria -expressões materiais da
proximidade entre a velha elite e os
imigrantes enriquecidos.
Apesar de tudo, é ainda possível encontrar em São Paulo "lugares de
memória", ou seja, locais que perduram ao longo do tempo, estabelecendo uma continuidade, um elo afetivo,
entre passado e presente. A circunstância de serem mais ou menos antigos não é um dado essencial para
identificá-los. Por bela que seja a reconstrução do antigo colégio dos jesuítas, no Pátio do Colégio, ela constitui, no meu caso, um monumento
histórico representativo de um passado distante, que não encontra prolongamento nos dias de hoje.
A partir dessa constatação, os antigos habitantes da cidade têm, cada
qual, suas preferências. As minhas são
o Teatro Municipal, o Museu Paulista,
o Theatro São Pedro, na Barra Funda,
e, sobretudo, o estádio do Pacaembu.
Toda vez que passo por ele, recordo
os primeiros alicerces, fincados em
uma grande clareira, os campos do jogo de bocha das proximidades, onde
se alternavam a concentração silenciosa e os gritos de irônica provocação
dos imigrantes italianos, o grande dia
da festa de inauguração.
Excepcionalmente, o tempo seguiu
seu curso, mas não deixou apenas escombros. Os "portões monumentais" são os mesmos, como é a mesma, com pequenas alterações, a fisionomia interna do estádio. Mais ainda,
as vozes da multidão, vaiando uma
arbitragem suspeita, desesperando-se
diante de uma oportunidade perdida,
explodindo quando o time do coração
entra em campo ou marca um gol, expressam as mesmas emoções dos torcedores do passado.
Nada disso significa mergulhar no
saudosismo. Quem se preocupa com a
preservação da memória tem de esperar também que os habitantes da cidade possam ter, no futuro, uma melhor
qualidade de vida. É o que se pode desejar à velha senhora, fugindo aos votos banais de um feliz aniversário.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.
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