São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2007

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Antinomias do Brasil

OLGÁRIA MATOS

O que Renato Janine disse é que o perdão só pode ser concedido pela vítima. Por isso, o crime permanece, no âmbito moral, irreparável

EM RECENTE entrevista, o governador do Rio de Janeiro afirmou que a violência no Brasil é inteiramente contornável, pois nosso "processo civilizatório" é "irreversível". Para fundamentar seu ponto de vista -diariamente desmentido-, se voltou para o "desenvolvimento econômico" anunciado. É em um quadro em que o econômico justifica a violência, o "social" a explica e o bovarismo vê civilização onde não há projeto civilizatório que deveria ser entendido o artigo do professor Renato Janine Ribeiro (Mais!, 18/2). Ninguém defende pena de morte e tortura. Fazê-lo seria gravíssimo.
Mas também preocupante seria se, ante a procissão de horrores em que vive o país, um indivíduo respondesse a eles com neutralidade e impessoalidade. Adorno anotou em "A Educação após Auschwitz" que um dos traços da sociedade totalitária é a perda da capacidade de identificação com a dor do outro, o desaparecimento da compaixão -tristeza mimética que faz de quem sofre outro nós-mesmos.
Um crime cruel é, em si, irreversível, não tem perdão. Pois, assim como o perdão só pode ser pedido por quem cometeu um crime ou uma ofensa, o ato de perdoar só pode ser concedido diretamente pela vítima. O que Renato Janine escreveu é que, justamente por não haver procuração dada por quem foi silenciado, cada um de nós não tem o direito de perdoar e, por isso, o crime permanece, no âmbito moral, irreparável. No artigo, ele não perdoa. Não tendo sido a vítima imediata dessa violência, perdoar, para ele, seria imoral.
Apesar de concebida em âmbito religioso por Jesus Cristo, a faculdade de perdoar foi enunciada em um sentido secular: "Deus perdoa nossas dívidas assim como nós perdoamos nossos devedores". A Igreja Católica, ao defender, com razão e humanidade, a dignidade de toda pessoa, põe em ação as palavras de Cristo: "Perdoai, Senhor, eles não sabem o que fazem". Restaria saber até que ponto os assassinos de hoje são inocentes. E quem o arbitra é o Estado. Quanto a isso, surpreendem as declarações oficiais. Na segunda-feira, o presidente da República disse que qualquer um poderia ser levado a cometer um crime como o que atingiu a criança no Rio de Janeiro.
A psicanalista professora titular do Instituto de Psicologia da USP Maria Inês Assumpção Fernandes observou a estranheza dessa afirmação. A impossibilidade de discernir quem é a vítima e quem é o agressor, diz ela, ocorre em situações de terror, seja o promovido pelo Estado, seja o vivido pela sociedade. O artigo em questão nos leva a perguntar se não são as atitudes dos poderes públicos que trazem de volta a lei do sangue.
Entenderam mal o pensamento de Renato Janine tanto os que o elogiaram, pretendendo que o professor defende o direito de matar do Estado, quanto os que o atacaram pela mesma razão. Não é porque o capitalismo contemporâneo é pulsional e infantilizante, porque produz uma educação e uma cultura para a qual a atividade do pensamento é próxima a zero que o Estado teria direito ao assassinato frio -que é a pena de morte-, e o criminoso, à indulgência da lei.
O que o ensaio de Renato Janine dá a pensar é, entre outras coisas, se, ao dar-se preferência ao aspecto educativo da lei, suprimindo, na prática, seu caráter punitivo, e se, na comedida e prudente atitude dos representantes da lei e instituições humanitárias, não se expressa a idéia de que as condições materiais de existência explicam o crime e as condições sociais e penitenciárias o justificam.
Pois é tão infamante jovens e adultos serem trucidados em favelas e queimados em pneus quanto o é qualquer ser humano sê-lo em ônibus ou nas ruas da cidade, independentemente de sua extração social. Trauma após trauma, pode-se opinar o que se quiser sobre delinqüentes e seus crimes, só não há como dizer que se trata de "crime famélico". Esses jovens estão cheios de mensagens, e uma delas é a de não quererem só comida. Assim como é falta de pudor a mídia brasileira freqüentemente operar com presunção de culpa, também deveria ser rechaçada indulgência com criminosos. Afinal, é só no Brasil que delinqüentes são tratados não por seus nomes próprios, mas por diminutivos e com linguagem afetiva. É cedo que se adquire consciência do que é assassinar, do que é permitido e do que é interdito, sem o que uma sociedade não é uma sociedade.


OLGÁRIA CHAIN FÉRES MATOS é professora titular do Departamento de Filosofia da USP.

Leia artigo de Renato Janine Ribeiro no Mais! de 18/2 www.folha.com.br/070544


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