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Antinomias do Brasil
OLGÁRIA MATOS
O que Renato Janine disse é
que o perdão só pode ser
concedido pela vítima. Por
isso, o crime permanece, no
âmbito moral, irreparável
EM RECENTE entrevista, o governador do Rio de Janeiro afirmou
que a violência no Brasil é inteiramente contornável, pois nosso
"processo civilizatório" é "irreversível". Para fundamentar seu ponto de
vista -diariamente desmentido-, se
voltou para o "desenvolvimento econômico" anunciado. É em um quadro
em que o econômico justifica a violência, o "social" a explica e o bovarismo vê civilização onde não há projeto
civilizatório que deveria ser entendido o artigo do professor Renato Janine Ribeiro (Mais!, 18/2).
Ninguém defende pena de morte e
tortura. Fazê-lo seria gravíssimo.
Mas também preocupante seria se,
ante a procissão de horrores em que
vive o país, um indivíduo respondesse
a eles com neutralidade e impessoalidade. Adorno anotou em "A Educação após Auschwitz" que um dos traços da sociedade totalitária é a perda
da capacidade de identificação com a
dor do outro, o desaparecimento da
compaixão -tristeza mimética que
faz de quem sofre outro nós-mesmos.
Um crime cruel é, em si, irreversível, não tem perdão. Pois, assim como
o perdão só pode ser pedido por
quem cometeu um crime ou uma
ofensa, o ato de perdoar só pode ser
concedido diretamente pela vítima.
O que Renato Janine escreveu é
que, justamente por não haver procuração dada por quem foi silenciado,
cada um de nós não tem o direito de
perdoar e, por isso, o crime permanece, no âmbito moral, irreparável. No
artigo, ele não perdoa. Não tendo sido
a vítima imediata dessa violência,
perdoar, para ele, seria imoral.
Apesar de concebida em âmbito religioso por Jesus Cristo, a faculdade
de perdoar foi enunciada em um sentido secular: "Deus perdoa nossas dívidas assim como nós perdoamos
nossos devedores". A Igreja Católica,
ao defender, com razão e humanidade, a dignidade de toda pessoa, põe
em ação as palavras de Cristo: "Perdoai, Senhor, eles não sabem o que fazem". Restaria saber até que ponto os
assassinos de hoje são inocentes. E
quem o arbitra é o Estado.
Quanto a isso, surpreendem as declarações oficiais. Na segunda-feira, o
presidente da República disse que
qualquer um poderia ser levado a cometer um crime como o que atingiu a
criança no Rio de Janeiro.
A psicanalista professora titular do
Instituto de Psicologia da USP Maria
Inês Assumpção Fernandes observou
a estranheza dessa afirmação. A impossibilidade de discernir quem é a
vítima e quem é o agressor, diz ela,
ocorre em situações de terror, seja o
promovido pelo Estado, seja o vivido
pela sociedade. O artigo em questão
nos leva a perguntar se não são as atitudes dos poderes públicos que trazem de volta a lei do sangue.
Entenderam mal o pensamento de
Renato Janine tanto os que o elogiaram, pretendendo que o professor defende o direito de matar do Estado,
quanto os que o atacaram pela mesma razão. Não é porque o capitalismo
contemporâneo é pulsional e infantilizante, porque produz uma educação
e uma cultura para a qual a atividade
do pensamento é próxima a zero que
o Estado teria direito ao assassinato
frio -que é a pena de morte-, e o criminoso, à indulgência da lei.
O que o ensaio de Renato Janine dá
a pensar é, entre outras coisas, se, ao
dar-se preferência ao aspecto educativo da lei, suprimindo, na prática,
seu caráter punitivo, e se, na comedida e prudente atitude dos representantes da lei e instituições humanitárias, não se expressa a idéia de que as
condições materiais de existência explicam o crime e as condições sociais
e penitenciárias o justificam.
Pois é tão infamante jovens e adultos serem trucidados em favelas e
queimados em pneus quanto o é qualquer ser humano sê-lo em ônibus ou
nas ruas da cidade, independentemente de sua extração social. Trauma
após trauma, pode-se opinar o que se
quiser sobre delinqüentes e seus crimes, só não há como dizer que se trata de "crime famélico". Esses jovens
estão cheios de mensagens, e uma delas é a de não quererem só comida.
Assim como é falta de pudor a mídia brasileira freqüentemente operar
com presunção de culpa, também deveria ser rechaçada indulgência com
criminosos. Afinal, é só no Brasil que
delinqüentes são tratados não por
seus nomes próprios, mas por diminutivos e com linguagem afetiva. É
cedo que se adquire consciência do
que é assassinar, do que é permitido e
do que é interdito, sem o que uma sociedade não é uma sociedade.
OLGÁRIA CHAIN FÉRES MATOS é professora titular do
Departamento de Filosofia da USP.
Leia artigo de Renato Janine Ribeiro no Mais! de 18/2
www.folha.com.br/070544
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