São Paulo, quinta-feira, 25 de abril de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

PSDB e PFL

FERNANDO HADDAD

A ciência política quantitativa já havia feito a conta: quase metade dos quadros do PSDB era egressa da antiga Arena, partido que deu apoio à ditadura militar. Contudo ninguém se atrevia a dizer que o PSDB pudesse estar à direita de um partido nascido das entranhas da própria ditadura, o PFL. Foi o que fez Roberto Mangabeira Unger, na recente defesa de uma aliança entre PFL e Ciro Gomes:
"Direita antinacional, anti-social e anti-republicana é hoje o PSDB, tanto na orientação econômica quanto na prática política. O atual governo sacrificou as exigências da produção e do trabalho às conveniências do dinheiro vadio. Também nas práticas políticas é o PSDB que merece hoje o título de direita. Nada nos hábitos clientelistas das outras forças conservadoras se iguala à coerção e à sujeira que emanam hoje do Palácio. E o PFL? É o PSD de hoje: confederação de chefias locais. Não tem vínculo orgânico com a linha de Wall Street e de Washington. A maior parte de suas lideranças preservou o sentimento do nacional e da identidade de seus Estados dentro da Federação. As práticas atrasadas que persistem nele, como em todos os partidos brasileiros, são falhas menores" (Opinião, pág. A2, 3/4/02).
O problema dessa avaliação é que ela procura situar o PFL e o PSDB no espectro ideológico sem considerar a evolução histórica dessas forças políticas.
Perguntar pelo PFL é perguntar pelo seu fundamento. O fundamento do PFL é o patrimonialismo moderno, ou seja, a percepção socialmente motivada de que, nas condições brasileiras (e não só brasileiras), a posse do aparato estatal (a Sudam, a Sudene, o BNDES, o controle ativo e passivo das concessões etc.) é fonte garantida de renda.
Por ocasião do processo de democratização, apesar de quadros do PFL aderirem ao PSDB, esses partidos mantinham uma certa distância política um do outro, em parte pelas dúvidas suscitadas no primeiro sobre a origem oposicionista deste último, ele próprio uma dissidência do PMDB no momento de sua pefelização. Contudo foi graças ao fato de se manterem distintos que o PFL não só garantiu a sua sobrevivência espiritual, como, nos governos tucanos, adquiriu seu desenvolvimento máximo.


O tucano foi, desde o primeiro momento, o pefelista teórico; e o pefelista é o tucano prático


Assim, o PFL não se tem conservado apesar da história, mas por intermédio dela. Os governos tucanos engendram constantemente o espírito pefelista.
Contudo, cabe a pergunta: O que faltou ao PFL para se desenvolver como força política autônoma?
Ganhar autocompreensão teórica.
Mas por quê?
Porque a concepção do mundo patrimonialista é limitada por natureza. O PFL não podia, pela sua essência, consagrar-se teoricamente, mas somente na prática, pois a prática dos negócios do Estado é sua verdadeira e única essência. Não podia, também, criar algo de completamente novo, mas somente atrair as novidades à órbita de sua engenhosidade, porque o patrimonialismo, cujo motor é a gestão auto-interessada do Estado, se conduz passivamente e não tem a faculdade de se ampliar, a não ser pelo desdobramento natural da dinâmica social.
O patrimonialismo atinge seu apogeu com o atual modelo de privatizações. O que o concessionário almeja no Brasil não é lucro, mas renda, mais-valia sem risco. E muitas vezes adquiriu a concessão com dinheiro público emprestado a juros subsidiados. Isso só poderia ocorrer sob um governo tucano. Somente sob o tucanato, que converte todas as relações regionais em relações nacionais externas, podiam-se suplantar os interesses oligárquicos pelo patrimonialismo genérico.
O tucano foi, desde o primeiro momento, o pefelista teórico; e o pefelista é o tucano prático. O tucanismo é o pensamento sublime do pefelismo, assim como o pefelismo é a aplicação prática e vulgar do tucanismo. Essa aplicação só poderia chegar a ser geral quando uma força política levasse a termo, teoricamente, a auto-alienação do Estado de si mesmo. Quando o tucanato, no poder, se tornasse prático.
O PFL, portanto, carece de transcendência. Poderá reencontrá-la no drama, na comédia ou no épico; respectivamente, no maduro ninho tucano, na graça de um garotinho sobrenatural ou num jovem enérgico, saído de suas hostes, preparado para o salto rumo ao universal (Collor, Luis Eduardo, Roseana ou... Ciro?).
O pefelismo só se tornará impossível quando a sociedade conseguir acabar com a essência empírica do patrimonialismo, ou seja, quando o Estado e os cidadãos se tornarem repúblicos. O pefelista será impossível porque sua consciência carecerá de objeto.
Se quiser ter um grande destino, essa deverá ser a tarefa histórica do PT.


Fernando Haddad, 39, advogado, mestre em economia, doutor em filosofia, é professor de teoria política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico de São Paulo.



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