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TENDÊNCIAS E DEBATES
O Brasil e a questão da latinidade
Continuamos olhando para modelos europeus e evitando compreender
os processos dos países hispânicos
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JOSÉ A. DE FREITAS NETO
A latinidade ocupou o noticiário
depois da vitória da Unidos de Vila
Isabel no Carnaval carioca deste ano. O
desfile produziu uma apresentação de
alegorias que abordavam pirâmides
pré-colombianas, manifestações folclóricas e artesanais indígenas, referências
às "repúblicas de bananas" e a Bolívar.
Essa harmonia, recompensadora para a
Escola de Samba, nem sempre é condizente com os processos vivenciados pelos povos das Américas.
Para os historiadores que estudam a
região, esse é um momento para propor
reflexões sobre a latinidade e pensar sobre o pouco espaço que os temas latino-americanos encontram atualmente em
nossas escolas. O Brasil é cercado por
países que foram colonizados pela Coroa espanhola e, para desgosto de muitos, compõe o mito de que a América
Latina é um todo homogêneo.
A latinidade torna-se, dessa forma,
um elemento de identidade, e, para que
ela se constitua e se mantenha, é necessário negar diferenças existentes e construir um universo de semelhanças. Na
busca de elementos que buscamos incorporar ou negar realizamos fragmentações e junções que descontextualizam
as referências histórico-culturais que os
produziram.
Na América Latina esse processo é
marcado por longos silêncios e uniformizações. O termo "latino", por exemplo, é uma invenção que enaltece as heranças da tradição européia e obscurece
a participação dos nativos deste continente e dos africanos trazidos para estas
terras. Cria uma filiação que remonta às
origens romanas e que muito pouco dizem sobre a América. Hoje o adjetivo
"latino" está associado ao subdesenvolvimento econômico e às precárias instituições democráticas apontadas pela
Cepal a partir da década de 1950, como
demonstrou o pesquisador Héctor
Bruit.
Apesar das homogeneizações decorrentes dessa "latinização", é inegável
que, do México à Patagônia, temos processos culturais específicos em cada
área. Ao mesmo tempo nutrimos supostas perspectivas comuns, geradas a
partir do processo de colonização, que
integram os povos das Américas em seu
imaginário de uma "pátria comum".
Para os estudantes brasileiros, a história da América tem sido negligenciada.
Os conteúdos desta região que fala espanhol são bastante restritos em nossas
escolas. E, quando existem, são quase
sempre apresentados como "conseqüência" da história européia.
Em linhas gerais, podemos dizer que
os conteúdos nas escolas de ensino fundamental e médio se restringem a alguns lugares-comuns: descobrimentos
e colonização; as independências; populismo e as ditaduras militares no século 20. No primeiro caso, destaca-se a
exploração e a "incapacidade" indígena
para a vida política; os processos de independência são apresentados prioritariamente como resultado da ação de
Napoleão na Península Ibérica; o populismo é visto como uma prática política
discutível que pereniza a figura do caudilho. As ditaduras são apresentadas como mero reflexo das questões ideológicas da Guerra Fria. Em quase todos os
exemplos a opção por uma lógica externa, que nega aos americanos a condição
de construtores de suas histórias.
A rigor não há problema nessa seleção
de conteúdos, mas a pergunta a ser feita
é sobre qual a abordagem que propomos diante deles. Nossos estudantes são
submetidos a muitos detalhes das revoluções européias e a praticamente nada
da Revolução Mexicana ou da nicaragüense. Busca-se explicar os conflitos
dos Bálcãs e silencia-se sobre situações
na América Central e em países mais
próximos, como Bolívia e Equador. O
Brasil teve atuação destacada nas relações com seus vizinhos, especificamente na região do Prata no século 19. Ainda
hoje nossos vínculos com os países da
América Latina são indiscutíveis, como
atestam a missão militar no Haiti e as
constantes discussões com os parceiros
do Mercosul.
No entanto, continuamos olhando
para modelos europeus e evitando
compreender os processos dos países
hispânicos, a vivacidade de suas culturas, as formas de resistência que esses
povos praticaram e praticam em diferentes regiões. Diante de uma lógica européia, da qual também partilhamos,
mas que não é exclusiva, pouco compreendemos sobre esse continente.
A América hispânica não é apenas um
universo de exotismos. Ela é um terreno
de convivências que tensionam modelos e que buscam se reinventar diante de
sonhos e aspirações que nem sempre
são explicitados. A visão de instabilidade, que comumente se atribui à América, é um julgamento feito por lentes que
desconhecem as matizes e articulações
de um continente com muitas mazelas.
Para não mantermos uma visão estereotipada sobre a latinidade é fundamental que ampliemos nossos conhecimentos sobre esses processos históricos, inserindo conteúdos e informações
de países que têm uma história que merece ser estudada. Os temas de história
da América têm que ser recuperados
dentro das propostas educacionais para
que possamos saber mais sobre nossos
vizinhos. É muito difícil pensar em
qualquer forma de integração pautada
no desconhecimento e no desmerecimento.
José Alves de Freitas Neto, 34, é professor-doutor no departamento de história da Unicamp e secretário da Associação Nacional de Pesquisadores de História Latino-Americana e Caribenha.
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