São Paulo, terça-feira, 25 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Superávit primário, o vilão


A meta de superávit primário torna-se um pesadelo sem fim e realimenta a dívida que pretende combater

JOÃO FELÍCIO

Todos os que dependem unicamente de seu trabalho, ou aqueles que não desfrutam apenas da riqueza improdutiva representada pela ciranda financeira, não podem silenciar diante do altíssimo superávit primário perseguido e mantido pela equipe econômica, com a principal finalidade de fazer frente aos serviços da dívida interna, cujos dividendos cabem a uma minoria de credores extremamente ricos, calculada em 0,04% do total de famílias do país.
Infelizmente, esse modelo vem ganhando força, impulsionado, contraditoriamente, pelo crescimento do PIB. Segundo dados da subseção do Dieese-CUT Nacional, em 2002 o superávit atingiu a marca de R$ 52,4 bilhões (3,89% do PIB), que já considerávamos excessivo. Em 2005, a estimativa é de que o superávit tenha fechado em torno de R$ 98,2 bilhões, ou 5,13% do PIB. Uma diferença de quase R$ 46 bilhões a mais.
Dinheiro suficiente para repetir pelos próximos sete anos o que foi corretamente investido no Bolsa Família em 2005. Ou o equivalente a quase nove vezes as verbas adicionadas ao Orçamento federal de 2006 para pagar reajustes aos servidores. Bilhões que acabariam, de uma só vez, com o que técnicos alegam ser a previsão de déficit na Previdência para este ano -déficit cujo valor não nos convencerá jamais antes que uma vigorosa auditoria seja feita nas contas, mas que aqui é usado para fins de comparação, aproveitando o aspecto monstruoso que lhe deram ao longo dos anos.
É evidente que o atual governo federal precisou recorrer a profunda austeridade, especialmente nos dois primeiros anos, em função do escandaloso desajuste nas contas deixado pelo anterior. Porém, a necessidade de conquistar com rapidez a confiança dos agentes econômicos externos e internos foi conquistada. Sacrifício ou remédio amargo -expressões correntes no início do mandato- que cumpriu os controversos objetivos e que precisa começar a sair de cena.
Inclusive pelo fato de não lograr queda significativa da relação da dívida pública com o PIB. Atualmente, segundo pesquisa do economista Marcio Pochmann, o estoque da dívida pública -que ele batiza de direitos sobre a riqueza financeira- corresponde a 50% do PIB. No ano de 2005, por exemplo, a despeito do imenso esforço para atingir R$ 98,2 bilhões de superávit primário, as despesas com juros eram estimadas em R$ 147 bilhões, superior às verbas de custeio e investimento de todos os ministérios.
Combinada com as taxas básicas de juros atualmente em vigor, a meta de superávit primário torna-se um pesadelo sem fim. Realimenta a dívida que pretende combater e drena os recursos que poderiam ser utilizados para o desenvolvimento econômico e social. Mas não é só isso. Além da economia abertamente reservada para o superávit, a cupidez do mercado faz com que 20% das receitas vinculadas aos gastos sociais estejam sendo contingenciadas para outros fins. Isso significa, também, que parte das propostas conservadoras de redução dos gastos sociais já está sendo aplicada, sem que os resultados do tal ajuste defendido apareçam. Os investimentos para a maioria da população são duramente sacrificados, em detrimento da lógica financeira.
A mudança dessa realidade deve passar por uma renegociação soberana de contratos e de papéis da dívida interna. Nossa maior discordância com economistas e consultores conservadores vem daí. Enquanto eles acreditam que a solução é cortar ainda mais os gastos sociais e preservar o pagamento dos juros das dívidas públicas, nós defendemos o enfrentamento, ainda que negociado.
Para finalizar, outro comparativo: os R$ 46 bilhões a mais de superávit, resultantes da comparação entre 2002 e 2005, seriam suficientes para financiar o equivalente a quase duas versões do Imposto Solidariedade sobre Grandes Fortunas, proposta criada pela CUT para financiar um fundo de valorização do salário mínimo até 2012.
O imposto teria alíquota média de 1,5% e incidiria uma única vez sobre todo o patrimônio líquido de empresas e famílias que excederem R$ 2,4 milhões. Geraria R$ 23,8 bilhões, e os tributados seriam, em sua maioria, os únicos interessados no enorme superávit primário em vigor no Brasil. Seria um bom começo de conversa numa mesa de renegociação.


João Felício, 53, professor, é presidente nacional da CUT (Central Única dos Trabalhadores).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS E DEBATES
José A. de Freitas Neto: O Brasil e a questão da latinidade

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.