São Paulo, terça-feira, 25 de maio de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A centelha

Parece que não pode mudar. Mas tem tudo para mudar de repente. Uma combinação de dois acontecimentos pode resultar em reviravolta. Antes de identificar essa combinação transformadora, é preciso entender a que descalabro chegamos.
Os trabalhadores, remediados ou pobres, continuam a aguardar soluções de um governo presidido por um ex-trabalhador, já angustiados com a convergência de desemprego e desordem que se vai instalando no país. Uma calmaria, de expectativa ansiosa, prenuncia a tempestade a começar quando a população compreender o quanto foi abandonada e traída. Os empresários desesperam: sem ânimo para aventurar-se no ambiente de um modelo econômico que representa a eutanásia dos produtores. É na classe média, onde sempre nascem as grandes mudanças da opinião brasileira, que surgem os primeiros sinais de resistência organizada contra um governo que ameaça nosso futuro nacional.
Uma demagogia de efeito decrescente tenta aquietar essas preocupações. Em nada é mais ostensiva essa demagogia do que na relação com os Estados Unidos: agressiva, no simbolismo espalhafatoso de constrangimentos impostos a visitantes ou no revide inconstitucional contra um jornalista; submissa, na entrega da política econômica aos interesses e aos dogmas dos mercados financeiros e no servilismo com que, no Conselho de Segurança, o Brasil faz a vontade dos americanos, a ponto de enviar nossos soldados para impor ao Haiti um governo de bandidos agradáveis a Washington.
Enquanto isso, desfaz-se, nas sombras, o pouco que tínhamos de império do direito. Um grupelho instalado no centro do Estado, com o beneplácito de um presidente refugiado em fantasias, forja síntese de fisiologismo, dirigismo e hegemonismo. Nada que aconteceu até agora em nossa história republicana iguala a desfaçatez com que essa camarilha insiste em tudo comandar do Palácio: desde os partidos a que se filiem os políticos até os grandes negócios que os empresários façam ou deixem de fazer. Desfaçatez que coincide com a sem cerimônia com que os mesmos comparsas abandonaram a promessa de reformar as normas que regem o financiamento das campanhas eleitorais e que propiciam acertos entre os poderosos e os endinheirados.
Tudo isso pode acabar de repente por conta da combinação do provável com o difícil. O acontecimento provável é o colapso da política econômica. Qualquer trauma externo exporá a fragilidade de uma política que sacrifica a nação ao pagamento de uma dívida que se torna, apesar do sacrifício, cada dia mais impagável. O êxito em exportar, baseado no estreitamento -não no aprofundamento- do mercado interno, apenas adiará o acerto penoso.
O acontecimento difícil -difícil, necessário e possível- é encarnar em proposta, em força e em pessoas a alternativa que o país continua a exigir: a alternativa pelo qual ele votou em 2002; a alternativa que as duas coalizões reinantes em nossa política -a que governava antes e a que governa agora- negaram e negam ao povo brasileiro. Difícil aparecer. Aparecendo, porém, não tão difícil triunfar. Uma disputa surpreendente pelo poder -fora dos cálculos dos sabidos, porém dentro da imaginação dos brasileiros- é a centelha que falta. Não faltará se houver cidadãos do Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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