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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
A centelha
Parece que não pode mudar.
Mas tem tudo para mudar de repente. Uma combinação de dois acontecimentos pode resultar em reviravolta. Antes de identificar essa combinação transformadora, é preciso entender a que descalabro chegamos.
Os trabalhadores, remediados ou
pobres, continuam a aguardar soluções de um governo presidido por um
ex-trabalhador, já angustiados com a
convergência de desemprego e desordem que se vai instalando no país.
Uma calmaria, de expectativa ansiosa,
prenuncia a tempestade a começar
quando a população compreender o
quanto foi abandonada e traída. Os
empresários desesperam: sem ânimo
para aventurar-se no ambiente de um
modelo econômico que representa a
eutanásia dos produtores. É na classe
média, onde sempre nascem as grandes mudanças da opinião brasileira,
que surgem os primeiros sinais de resistência organizada contra um governo que ameaça nosso futuro nacional.
Uma demagogia de efeito decrescente tenta aquietar essas preocupações. Em nada é mais ostensiva essa
demagogia do que na relação com os
Estados Unidos: agressiva, no simbolismo espalhafatoso de constrangimentos impostos a visitantes ou no revide inconstitucional contra um jornalista; submissa, na entrega da política econômica aos interesses e aos dogmas dos mercados financeiros e no
servilismo com que, no Conselho de
Segurança, o Brasil faz a vontade dos
americanos, a ponto de enviar nossos
soldados para impor ao Haiti um governo de bandidos agradáveis a Washington.
Enquanto isso, desfaz-se, nas sombras, o pouco que tínhamos de império do direito. Um grupelho instalado
no centro do Estado, com o beneplácito de um presidente refugiado em fantasias, forja síntese de fisiologismo, dirigismo e hegemonismo. Nada que
aconteceu até agora em nossa história
republicana iguala a desfaçatez com
que essa camarilha insiste em tudo comandar do Palácio: desde os partidos
a que se filiem os políticos até os grandes negócios que os empresários façam ou deixem de fazer. Desfaçatez
que coincide com a sem cerimônia
com que os mesmos comparsas abandonaram a promessa de reformar as
normas que regem o financiamento
das campanhas eleitorais e que propiciam acertos entre os poderosos e os
endinheirados.
Tudo isso pode acabar de repente
por conta da combinação do provável
com o difícil. O acontecimento provável é o colapso da política econômica.
Qualquer trauma externo exporá a
fragilidade de uma política que sacrifica a nação ao pagamento de uma dívida que se torna, apesar do sacrifício,
cada dia mais impagável. O êxito em
exportar, baseado no estreitamento
-não no aprofundamento- do
mercado interno, apenas adiará o
acerto penoso.
O acontecimento difícil -difícil, necessário e possível- é encarnar em
proposta, em força e em pessoas a alternativa que o país continua a exigir:
a alternativa pelo qual ele votou em
2002; a alternativa que as duas coalizões reinantes em nossa política -a
que governava antes e a que governa
agora- negaram e negam ao povo
brasileiro. Difícil aparecer. Aparecendo, porém, não tão difícil triunfar.
Uma disputa surpreendente pelo poder -fora dos cálculos dos sabidos,
porém dentro da imaginação dos brasileiros- é a centelha que falta. Não
faltará se houver cidadãos do Brasil.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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