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JOSÉ SARNEY
Um velho arretado
É inevitável, sendo político e
sempre em campo oposto, não escrever sobre Leonel Brizola, que tinha
na alma a herança dos caudilhos irredentos do Rio Grande do Sul, como
Bento Gonçalves, Davi Canabarro e
tantos mais, indormidos, de lança em
punho, prontos para a peleja e a degola. Foi um pelejador.
Conheci-o em 1959. Hélio Polito, um
jornalista pioneiro nos debates televisivos, levou-me a Porto Alegre para
participar do programa "Encontro
Marcado". Jovem deputado da UDN
-partido adversário de Brizola-, ali
estive e o conheci. Era um jovem governador, oito anos mais velho do que
eu, e tinha o jeito daqueles que ainda
estão preparando as armas. Conceito
de dinâmico e dono de um futuro político nacional.
Durante este quase meio século, não
me lembro de nenhum político que
não tenha sido alvo de sua crítica, que
não poupava amigos e adversários, alternados no tempo, de Jango, seu cunhado e aliado, até Lula, seu aliado e
companheiro de chapa. Presenciei sua
pregação para fechar o Congresso, resolver as reformas de base "na lei ou
na marra" e sua campanha da Legalidade.
Com o tempo, consolidou a imagem
de um velho lutador, que não escolhe
a causa e o lado quando se põe na raia.
Desapareceram o preconceito e o medo das suas bravuras para ser visto
com a marca do combatente em que
se esquecem os erros e os excessos, para a qual existem tolerância e admiração. Diziam os latinos: "De mortius nil
nisi bonum" -dos mortos só falar
bem.
Conheci, também, o outro Brizola:
não o guerreiro, mas a personalidade
moldada nas raízes rurais, da simplicidade de sua infância -e o ouvi falar
com imenso carinho sobre a figura de
sua mãe, vestida pobremente, na faina
do curral, responsável pelo sustento
dos filhos. Guardava o sinal da revolta
por seu pai assassinado. Era polido e
educado. Mostrava um certo ressentimento com o destino que extrapolava
para as pessoas. Não parecia aquele
homem possuído de ira incontornável
quando contava parábolas gaúchas e
usava o vocabulário característico dos
pagos, com as lendas do quero-quero
e as querências das estâncias.
Certa vez, deu-me um conselho,
quando, presidente, eu visitava o Rio,
em tempos de grande dificuldade:
"Não deixe sair os tratores do galpão
para trabalhar a terra quando chove
muito. Não rendem nada e ficam atolados". Outra vez: "As boiadas no Rio
Grande têm de caminhar devagar,
lentas, constantes e sem cães. Eles, às
vezes, brincam no calcanhar de um
boi e perde-se tudo na fúria do estouro". Desse tempo vem o "costeando o
alambrado". Eu tinha de decifrar de
quem e a quem ele falava.
Flávio Tavares conta, nas memórias
do exílio, que estava em Montevidéu
com Brizola, Neiva Moreira e outros.
Era uma tarde de nostalgia, sonhos de
levantes e de derrubada dos militares
no Brasil. Neiva Moreira arranca do
bolso uma lista dos que deveriam ser
fuzilados com a vitória (eu deveria
constar dessa relação). Começa a leitura. Vem o nome de Mem de Sá, gaúcho, ministro da Justiça. Brizola interrompe: "Esse não. Conheço-o. É um
homem que não merece. Será uma injustiça". Neiva protesta: "A lista tem
de ser de todos". A discussão varou a
noite. Não se chegou a uma conclusão.
Escapamos todos, graças ao Brizola.
Conseguiu um milagre. Passou a vida construindo inimigos e guerreando. Morreu cercado da homenagem
de todos, na unanimidade de que
marcara o seu tempo pela coerência
de divergir. Como se diz no Nordeste:
"Um velho arretado".
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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