São Paulo, Sexta-feira, 25 de Junho de 1999
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A invenção do zero

JOSÉ SARNEY

Conta Georges Ifrah, no seu monumental livro "História Universal dos Algarismos", que foi motivado a escrevê-lo, como professor de matemática, pela intrigante pergunta de um pequeno aluno: "Professor, quem inventou o zero?". Ele não teve resposta e enrolou: "Coisas que se perderam no tempo, muito antigas".
Hoje, depois do pandemônio que se implantou na cabeça da gente, com os números que são modificados, acrescidos, baralhados no sistema telefônico brasileiro, essa pergunta, se fosse feita a qualquer menino vidrado em televisão, seria respondida: "Foi o DDD". Há uma guerra publicitária e está mudando tudo no acesso às linhas do telefone interurbano. A única coisa que continua firme é o zero.
"Mas nada é novo debaixo do sol", está nos Salmos. Temos precedentes nos babilônios que associavam seus deuses a uma hierarquia: 60, a Anu, deus do Céu; 50, a Enlil, deus da Terra; 40, a Ea, deus das águas; e outros.
A grande indagação na história dos algarismos é o intrigante problema do zero, uma das maiores descobertas da mente humana. O zero é um conceito abstrato. O homem das cavernas só sabia o que era "um" e "dois", o mais era o "muitos". Os egípcios, que criaram uma escrita de belo visual, sem chegar ao alfabeto, representavam os números por símbolos de objetos e seres existentes. O um era um arpão, e o dez, um falcão. Mas não tinham um símbolo para o zero e talvez por isso não tenham descoberto o Babeltel.
A privatização veio para simplificar a nossa vida, melhorar o serviço, possibilitar a escolha de ligações mais baratas, acabar com as filas de pretendentes a telefones, ampliar a rede de telefones públicos, tornar as ligações mais rápidas, estender a telefonia a todos os lugares do Brasil com mais de cem habitantes. Grande programa e grandes esperanças foram espalhados. Passado algum tempo, as expectativas não se confirmaram. Os preços aumentaram, a fila para aquisição continuou a mesma, os serviços pioraram e ninguém liga para ninguém nem para lugar nenhum. A voz que aparece é sempre "não foi possível completar sua ligação". E agora, para afligir mais, surge a complicação dos números, e o consumidor tem a sensação de que a vantagem da privatização começou por tornar a discagem mais difícil.
Esses desencontros estão sendo os mesmos em toda a América Latina. O nosso foi maior, no caso das telecomunicações, pelo acesso que teve a opinião pública sobre o background da licitação, pelo lamentável episódio dos grampos. O povo mesmo, ponta final do processo, não percebeu os resultados. Em nome da concorrência, complicou-se a vida dos usuários, que estão tendo serviços piorados. As nossas agências reguladoras não estão, nem podiam estar, aparelhadas para fiscalizar esse mundo caótico de interesses globalizados, que detém isenções e privilégios, como o da Light, que pode indexar suas tarifas até 2005, embora a correção monetária esteja proibida.
Não sou contra privatizar, mas a privatização selvagem nos trouxe muitas complicações, inclusive essa de ter de recorrer ao bumbum dos meninos gordinhos para poder ter acesso aos novos donos de nossas conversas.
A agência responsável pelas telecomunicações tem um trabalho gigantesco pela frente. Controlar esses gigantes não é fácil. E mais difícil ainda dar-lhes nota zero.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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