São Paulo, quinta-feira, 25 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O "gaullismo" da diplomacia brasileira

SÉRGIO DANESE

Quando, no Curso de Altos Estudos do Itamaraty, debrucei-me sobre a diplomacia presidencial para a tese que seria livro do mesmo nome, defendi como padrão ideal, para uma comparação, a diplomacia presidencial norte-americana, até pela ausência histórica, no Brasil, de liderança comparável, por exemplo, à de De Gaulle.
Mas é útil reconhecer a atualidade da diplomacia e da visão de mundo do general, que faria da França, contra vento, maré e todas as evidências, e por hábil exercício de voluntarismo e liderança, um país vencedor da Segunda Guerra e ator de primeira grandeza na construção da Europa e na globalização.
Ao conclamar a França a resistir e ter um papel na condução da guerra, De Gaulle foi decisivo para lhe dar um lugar entre os vencedores. Foi ele quem apostou na independência diante dos Aliados e contra o regime colaboracionista de Vichy -para a retomada da auto-estima nacional, destruída com a humilhante derrota de 1940. E quem buscou depois a aliança com o antigo inimigo para lançar a construção européia, opondo-se a certas políticas do aliado e libertador norte-americano e propugnando uma política externa "tous azimuths", livre dos constrangimentos da Guerra Fria.
Graças a ter desenvolvido "uma certa idéia" de si mesma, com lideranças como a de De Gaulle, a França não se ofuscou na reestruturação do poder europeu e mundial nem pagou preço maior pela sua perda de primazia ou pelos erros da sua política colonial no pós-guerra (Vietnã e Argélia).
Noto agora que, em contraste com parte da análise feita no Brasil, o adjetivo "gaullista" vem sendo aplicado à política externa brasileira por analistas e diplomatas estrangeiros, para criticar em nós uma independência de visão e de ação em relação ao mundo e ao hemisfério, a pretensa veleidade de ter alguns projetos próprios e atitude tranquila e firme -às vezes de manhosa resistência diante dos EUA, quando consulta nossos interesses.
Gaullismo, nessa acepção, seria simplesmente ilusionismo presunçoso de potência de segunda classe, anti-americanismo desdenhoso e irresponsável ou desejo pueril de fazer pirraça, de ser do contra. Aplicado com ironia, sarcasmo ou irritação, o adjetivo indicaria ser ilegítimo ou mau ter uma visão própria dos nossos interesses ou do nosso destino manifesto como nação que tem pesadas responsabilidades internas, muitas responsabilidades regionais e alguma responsabilidade internacional. Ou ser ruim ter um projeto nacional e sustentá-lo com uma ação externa minimamente coerente.
Segundo essa visão, os países não poderiam ter projetos próprios se não têm poder estratégico, ou pelo menos econômico, equiparável ao das grandes potências mundiais -como se estas, para chegarem ao que são, não tivessem percorrido caminho pleno de obstáculos. Tampouco poderiam se inspirar em êxitos históricos (de que Rio Branco é paradigma), logrados graças a uma visão pragmática, realista e voluntarista da sua capacidade de ação e dos seus interesses. Não poderiam, em suma, ser diferentes e defender a sua individualidade, expressa na sua forma de ser, suas necessidades, aspirações e realizações.


Os países intermediários precisam de um tipo de liderança que catalise um salto adiante na sua visão de si mesmos


É como se De Gaulle tivesse sido exemplo de irrealismo político ou de traição ao interesse supremo da França de voltar a figurar entre as grandes potências mundiais, nem que fosse pelo prazer (tão francês) do prestígio. Como se tivesse feito mal à França por ter defendido suas concepções e não se ter submetido aos aliados anglo-saxões da Segunda Guerra, que teriam reduzido a França à condição de potência de segunda classe e não de co-partícipe da vitória aliada, com um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU.
É como, em suma, se a França devesse ter se conformado com uma posição subalterna e modesta, para purgar os erros da Terceira República e da colaboração, alienando seu futuro.
Os países intermediários, como a França no pós-guerra ou o Brasil de hoje, precisam de um tipo de liderança que catalise um salto adiante na sua visão de si mesmos, de seu projeto nacional e de seu lugar em sua região ou no mundo. Sem esse tipo de liderança, que pode ser individual sem ser bonapartista, ou colegiada sem ser emperrada, esses países tendem a se ofuscar diante da preeminência ou resistência dos demais, a ser reativos, a intimidar-se e a lidar com as situações de confronto, competição ou afirmação individual a partir de posição assumida de desvantagem, arcando de antemão com o ônus da fraqueza.
Aplicado ao Brasil, o adjetivo gaullista não só ganha atualidade e transitividade, como é até apropriado para se referir ao que o nosso país tem feito, mas sobretudo deve continuar fazendo, para defender seus interesses com independência, soberania e eficiência.
Vamos ser gaullistas: defendendo um projeto sub-regional de integração e as alianças estratégicas que nos convêm; mantendo uma visão construtiva, mas crítica, de nossas grandes parcerias; enfrentando o protecionismo dos países ricos e os assomos de protecionismo dos parceiros emergentes e exigindo reciprocidade e simultaneidade na abertura econômica e comercial, sem esquecer de buscar mais competitividade; defendendo a primazia do multilateralismo sobre o unilateralismo e o diálogo e a convergência no lugar da confrontação; tendo uma política externa sem alinhamentos nem camisas-de-força ideológicas, mas também sem exclusões -"tous azimuths"-, como queria De Gaulle; e, por que não, exercendo liderança "suave" quando os tempos, os desafios ou nossos projetos e interesses justificarem ou exigirem.
Se ser gaullista é ter "uma certa idéia do Brasil" e propugnar, na política externa, independência, firmeza e determinação na defesa do interesse nacional, então, sejamos gaullistas, como poderíamos dizer: "somos riobranquinos". São adjetivos que honram qualquer diplomacia e que, mais que descrever um sentimento ou inspirar uma vaidade, ilustram um projeto. Ou seja, uma boa idéia. Perguntem aos franceses.


Sérgio França Danese, 47, diplomata, é ministro na Embaixada do Brasil em Buenos Aires e autor de "Diplomacia Presidencial" (Top Books, 1999). As idéias deste artigo são de responsabilidade do autor e não engajam o Ministério das Relações Exteriores ou o governo brasileiro.



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