São Paulo, quarta-feira, 25 de julho de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Programas jornalísticos, sim; atualidades, não

ROBERTO MUYLAERT

Nenhuma TV pública brasileira será capaz de competir, em repercussão, com o jornalismo dos canais líderes de audiência

POR MAIS que a criação de uma TV pública seja acompanhada de um louvável arrazoado de boas intenções em relação ao público a que servirá diante da carência de valores transmitidos pelas emissoras comerciais, o fato é que a primeira preocupação do presidente da República ao conceber a sua TV é a possibilidade de reparar as críticas a seu governo feitas sem a respectiva contrapartida das "boas notícias". Defender-se das críticas, no caso, é desnecessário quando se considera quão bem aquinhoado é o governo Lula no tratamento que recebe da imprensa.
Por definição, nenhuma TV pública brasileira será capaz de competir, em repercussão, com o jornalismo dos canais líderes de audiência. Tudo que é estatal (já sei, TV pública não é estatal) tem maior burocracia, menor velocidade, ainda mais quando se trata do negócio televisão, em que tudo precisa ser rápido. O presidente não interferirá na programação, é verdade, até que surja a primeira notícia contrária ao governo, que será considerada "alta traição". Assim costumam reagir os governantes que viabilizam televisões públicas. E o dilema surgirá de imediato na cabeça dos dirigentes dessa TV "independente", mesmo sem uma manifestação do presidente: ignorar a notícia ou dar a versão "verdadeira" dos fatos, ou seja, a do governo?
O conselho da TV pública, a quem caberia dirimir esse tipo de dúvida, estará a léguas de distância quando isso acontecer. Mesmo que se reunisse em emergência, sabemos que o camelo foi projetado por um conselho ao tentar desenhar um cavalo. A verdade é que o jornalismo "hard news", o de notícias quentes, principal razão da existência da nova TV pública, não é solução adequada a esse gênero de televisão. A PBS americana, por exemplo, não tem telejornal. Em primeiro lugar, porque o volume de recursos para fazer um jornalismo completo é enorme. Na TV Cultura de São Paulo, por exemplo, aproxima-se de 40% do orçamento, mesmo para um telejornal limitado, com 1% de audiência.
Portanto, quando o senhor presidente desejar redargüir uma informação de uma TV comercial, vai competir em enorme desvantagem com ela. Seus pronunciamentos mais importantes não poderão prescindir da veiculação paga nos canais de maior audiência. Uma TV pública bem-sucedida pode almejar 10% de audiência, no máximo. Jamais 50%. Em geral, tem de um a três pontos, o que é normal para uma TV que procura melhorar o nível do cidadão: o povo liga a TV para se divertir, não para aprender.
A última observação, não menos importante, é que a cabeça do jornalista que trabalha na elaboração da notícia na TV pública passa por um processo psicológico progressivo, em que ele julga ser independente, dono do pedaço, uma vez que a TV não tem dono, ao contrário dos seus colegas das TVs comerciais, que sabem muito bem até onde vão os interesses de suas empresas, gerando uma auto-restrição voluntária nas pautas e textos por puro bom senso, sem que ninguém lhes precise ditar quais as diretrizes do canal em que trabalham.
Então, a primeira crise da TV pública terá início quando for percebido que ela tiver sido mais crítica em uma notícia relativa ao governo do que as emissoras comerciais que cobriram o mesmo fato. De outro lado, a TV pública poderá ter papel fundamental no esclarecimento do que seja o espírito de cidadania de que o Brasil carece e as TVs comerciais ignoram. Além disso, a programação educativa "lato sensu", a que a Constituição obriga, pode ser também suprida pela nova televisão, desde que de forma criativa e com uma imagem bem iluminada.
Nesse sentido, se o senhor presidente quiser fazer um teste, pode comparar a imagem da TV Globo com a de outras emissoras. Terá vontade de ficar na Globo, não importa qual o programa, só porque televisão é iluminação, como condição prévia para que seja possível analisar a que programa desejamos assistir. Agora basta fazer o mesmo teste de luminosidade com as TVs públicas ou estatais que estão no ar. É como se alguém apagasse o abajur da sala.
Na área jornalística, há um caminho aberto para a TV pública: os programas jornalísticos, incluindo documentários. Ninguém faz quase nada nessa área, pois são programas difíceis, demorados de produzir, caros, elaborados e exigem profissionais preparados, do tipo que se encontra mais na imprensa escrita que na televisiva, salvo honrosas exceções. À falta de programas jornalísticos, a TV pública entrará no lugar-comum das coberturas no Congresso e no Executivo, onde já existem cerca de 15 microfones, à cata da mesma notícia. Nesse caso, o 16º microfone estendido nas entrevistas coletivas será o da TV pública, para uma repetição redundante e enfadonha da mesma notícia, com o diferencial exclusivo da falta de audiência.
Em resumo: programas jornalísticos, sim, notícias de atualidade, não (exceto o mínimo previsto por lei). O restante da grade de programação será fácil de compor, partindo de bons exemplos que as TVs públicas e estatais do Brasil já desenvolveram e com a qualidade dos profissionais preparados para essa missão nobre. Como Franklin Martins, ministro da Comunicação Social, e Florestan Fernandes, hoje a serviço da TV pública.


ROBERTO MUYLAERT, 72, jornalista, foi presidente da TV Cultura de São Paulo de 1986 a 1995 e secretário de Comunicação Social do governo FHC (1995).

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