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TENDÊNCIAS/DEBATES
Programas jornalísticos, sim; atualidades, não
ROBERTO MUYLAERT
Nenhuma TV pública brasileira será capaz de competir, em repercussão, com o jornalismo dos canais líderes de audiência
POR MAIS que a criação de uma
TV pública seja acompanhada
de um louvável arrazoado de
boas intenções em relação ao público
a que servirá diante da carência de valores transmitidos pelas emissoras
comerciais, o fato é que a primeira
preocupação do presidente da República ao conceber a sua TV é a possibilidade de reparar as críticas a seu governo feitas sem a respectiva contrapartida das "boas notícias".
Defender-se das críticas, no caso, é
desnecessário quando se considera
quão bem aquinhoado é o governo
Lula no tratamento que recebe da
imprensa.
Por definição, nenhuma TV pública
brasileira será capaz de competir, em
repercussão, com o jornalismo dos
canais líderes de audiência.
Tudo que é estatal (já sei, TV pública não é estatal) tem maior burocracia, menor velocidade, ainda mais
quando se trata do negócio televisão,
em que tudo precisa ser rápido.
O presidente não interferirá na
programação, é verdade, até que surja
a primeira notícia contrária ao governo, que será considerada "alta traição". Assim costumam reagir os governantes que viabilizam televisões
públicas. E o dilema surgirá de imediato na cabeça dos dirigentes dessa
TV "independente", mesmo sem uma
manifestação do presidente: ignorar a
notícia ou dar a versão "verdadeira"
dos fatos, ou seja, a do governo?
O conselho da TV pública, a quem
caberia dirimir esse tipo de dúvida,
estará a léguas de distância quando isso acontecer. Mesmo que se reunisse
em emergência, sabemos que o camelo foi projetado por um conselho ao
tentar desenhar um cavalo.
A verdade é que o jornalismo "hard
news", o de notícias quentes, principal razão da existência da nova TV
pública, não é solução adequada a esse gênero de televisão. A PBS americana, por exemplo, não tem telejornal. Em primeiro lugar, porque o volume de recursos para fazer um jornalismo completo é enorme. Na TV
Cultura de São Paulo, por exemplo,
aproxima-se de 40% do orçamento,
mesmo para um telejornal limitado,
com 1% de audiência.
Portanto, quando o senhor presidente desejar redargüir uma informação de uma TV comercial, vai competir em enorme desvantagem com
ela. Seus pronunciamentos mais importantes não poderão prescindir da
veiculação paga nos canais de maior
audiência.
Uma TV pública bem-sucedida pode almejar 10% de audiência, no máximo. Jamais 50%. Em geral, tem de
um a três pontos, o que é normal para
uma TV que procura melhorar o nível
do cidadão: o povo liga a TV para se divertir, não para aprender.
A última observação, não menos
importante, é que a cabeça do jornalista que trabalha na elaboração da
notícia na TV pública passa por um
processo psicológico progressivo, em
que ele julga ser independente, dono
do pedaço, uma vez que a TV não tem
dono, ao contrário dos seus colegas
das TVs comerciais, que sabem muito
bem até onde vão os interesses de
suas empresas, gerando uma auto-restrição voluntária nas pautas e textos por puro bom senso, sem que ninguém lhes precise ditar quais as diretrizes do canal em que trabalham.
Então, a primeira crise da TV pública terá início quando for percebido
que ela tiver sido mais crítica em uma
notícia relativa ao governo do que as
emissoras comerciais que cobriram o
mesmo fato.
De outro lado, a TV pública poderá
ter papel fundamental no esclarecimento do que seja o espírito de cidadania de que o Brasil carece e as TVs
comerciais ignoram. Além disso, a
programação educativa "lato sensu",
a que a Constituição obriga, pode ser
também suprida pela nova televisão,
desde que de forma criativa e com
uma imagem bem iluminada.
Nesse sentido, se o senhor presidente quiser fazer um teste, pode
comparar a imagem da TV Globo com
a de outras emissoras. Terá vontade
de ficar na Globo, não importa qual o
programa, só porque televisão é iluminação, como condição prévia para
que seja possível analisar a que programa desejamos assistir. Agora basta
fazer o mesmo teste de luminosidade
com as TVs públicas ou estatais que
estão no ar. É como se alguém apagasse o abajur da sala.
Na área jornalística, há um caminho aberto para a TV pública: os programas jornalísticos, incluindo documentários. Ninguém faz quase nada
nessa área, pois são programas difíceis, demorados de produzir, caros,
elaborados e exigem profissionais
preparados, do tipo que se encontra
mais na imprensa escrita que na televisiva, salvo honrosas exceções.
À falta de programas jornalísticos, a
TV pública entrará no lugar-comum
das coberturas no Congresso e no
Executivo, onde já existem cerca de
15 microfones, à cata da mesma notícia. Nesse caso, o 16º microfone estendido nas entrevistas coletivas será
o da TV pública, para uma repetição
redundante e enfadonha da mesma
notícia, com o diferencial exclusivo
da falta de audiência.
Em resumo: programas jornalísticos, sim, notícias de atualidade, não
(exceto o mínimo previsto por lei).
O restante da grade de programação será fácil de compor, partindo de
bons exemplos que as TVs públicas e
estatais do Brasil já desenvolveram e
com a qualidade dos profissionais
preparados para essa missão nobre.
Como Franklin Martins, ministro da
Comunicação Social, e Florestan Fernandes, hoje a serviço da TV pública.
ROBERTO MUYLAERT, 72, jornalista, foi presidente da
TV Cultura de São Paulo de 1986 a 1995 e secretário de Comunicação Social do governo FHC (1995).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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