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São Paulo, segunda-feira, 25 de agosto de 2003

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BORIS FAUSTO

Lembrando Haroldo

A coluna lembra hoje Haroldo de Campos, recentemente falecido. Não para falar do transcriador, poeta e ensaísta, porque esses aspectos centrais de sua personalidade intelectual são e continuarão sendo analisados por especialistas, entre os quais não tenho a pretensão de me incluir. Falo a partir de outro ângulo, de quem conviveu com Haroldo em momentos e situações diversas, que agora me vêm à mente como fragmentos recuperados.
Nesses fragmentos, reaparece a modesta casa geminada da rua Cândido Espinheira, nas Perdizes, onde Haroldo e seu irmão Augusto começavam um labor intelectual intenso, metódico, permeado de paixão, que preenchia sábados e domingos inteiros. Reaparece também -imagem de mais de 50 anos- a efêmera iniciativa da "Revista dos Novíssimos", em que ensaiávamos os primeiros passos poéticos, no cânone modernista.
Surgem ainda os bancos austeros do Colégio São Bento, onde fui contemporâneo de Haroldo e colega de classe de Augusto. Nessa época, muito aprendi com eles e tive, em troca, a honra de convencê-los de que Drummond era um poeta bem superior a Cassiano Ricardo. Surge na lembrança, afinal, o sexto andar da reitoria velha da Universidade de São Paulo, onde, como consultores jurídicos, Haroldo e eu nos sentamos em mesas próximas por anos a fio, encerrados naquela metafórica "prisão agrícola", como dizia Haroldo, ao contemplar pela vidraça a paisagem verde que se estendia diante de nossos olhos.
Destaco duas coisas na trajetória dos irmãos Campos: a proposta universalista e a intransigência - que, nesse caso, é imensa virtude de seu trabalho intelectual. Haroldo e Augusto não foram em busca do "intrinsecamente brasileiro", mas trataram desde cedo de abrir-se ao influxo das correntes estéticas mais criativas, viessem de onde viessem. No percurso, acabaram por tornar-se expoentes de uma inventiva ousada, demonstrando, entre outras coisas, que no plano da estética e da arte não operam necessariamente os constrangimentos da economia.
A intransigência intelectual -concorde-se ou discorde-se de suas concepções- tem um raro valor em uma sociedade cada vez mais voltada para os êxitos mercadológicos, para a busca da visibilidade fácil, à custa de muitas transigências. Por anos e anos, Haroldo e Augusto foram marginais nos meios literários, produtores incansáveis que não temeram o isolamento e as invectivas, entrando em polêmicas, com os dentes afiados. Nesse ponto, e só nesse ponto, inseriram-se em uma tradição brasileira de longa data, o "estilo tropical" a que se refere o ensaísta Roberto Ventura, morto prematuramente.
A consagração chegou, por fim -creio que a partir do encontro com o tropicalismo-, uma consagração em círculos diversificados, mas quase sempre longe do oficialismo e das festas celebrativas. Para ficar em um só exemplo: seria possível imaginar Haroldo metido no fardão da Academia Brasileira de Letras?
Diante dessa perda, identifico-me com a sensibilidade de Elias Canetti, admirável escritor búlgaro, descendente de judeus espanhóis. Canetti teve na morte uma de suas obsessões temáticas, não para cantá-la, mas, pelo contrário, para odiá-la tão furiosa quanto inutilmente.


Boris Fausto escreve às segundas nesta coluna.


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