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BORIS FAUSTO
Lembrando Haroldo
A coluna lembra hoje Haroldo
de Campos, recentemente falecido. Não para falar do transcriador,
poeta e ensaísta, porque esses aspectos
centrais de sua personalidade intelectual são e continuarão sendo analisados por especialistas, entre os quais
não tenho a pretensão de me incluir.
Falo a partir de outro ângulo, de quem
conviveu com Haroldo em momentos
e situações diversas, que agora me
vêm à mente como fragmentos recuperados.
Nesses fragmentos, reaparece a modesta casa geminada da rua Cândido
Espinheira, nas Perdizes, onde Haroldo e seu irmão Augusto começavam
um labor intelectual intenso, metódico, permeado de paixão, que preenchia sábados e domingos inteiros.
Reaparece também -imagem de
mais de 50 anos- a efêmera iniciativa
da "Revista dos Novíssimos", em que
ensaiávamos os primeiros passos poéticos, no cânone modernista.
Surgem ainda os bancos austeros do
Colégio São Bento, onde fui contemporâneo de Haroldo e colega de classe
de Augusto. Nessa época, muito
aprendi com eles e tive, em troca, a
honra de convencê-los de que Drummond era um poeta bem superior a
Cassiano Ricardo. Surge na lembrança, afinal, o sexto andar da reitoria velha da Universidade de São Paulo, onde, como consultores jurídicos, Haroldo e eu nos sentamos em mesas próximas por anos a fio, encerrados naquela metafórica "prisão agrícola", como
dizia Haroldo, ao contemplar pela vidraça a paisagem verde que se estendia diante de nossos olhos.
Destaco duas coisas na trajetória dos
irmãos Campos: a proposta universalista e a intransigência - que, nesse
caso, é imensa virtude de seu trabalho
intelectual. Haroldo e Augusto não foram em busca do "intrinsecamente
brasileiro", mas trataram desde cedo
de abrir-se ao influxo das correntes estéticas mais criativas, viessem de onde
viessem. No percurso, acabaram por
tornar-se expoentes de uma inventiva
ousada, demonstrando, entre outras
coisas, que no plano da estética e da
arte não operam necessariamente os
constrangimentos da economia.
A intransigência intelectual -concorde-se ou discorde-se de suas concepções- tem um raro valor em uma
sociedade cada vez mais voltada para
os êxitos mercadológicos, para a busca da visibilidade fácil, à custa de muitas transigências. Por anos e anos, Haroldo e Augusto foram marginais nos
meios literários, produtores incansáveis que não temeram o isolamento e
as invectivas, entrando em polêmicas,
com os dentes afiados. Nesse ponto, e
só nesse ponto, inseriram-se em uma
tradição brasileira de longa data, o
"estilo tropical" a que se refere o ensaísta Roberto Ventura, morto prematuramente.
A consagração chegou, por fim
-creio que a partir do encontro com
o tropicalismo-, uma consagração
em círculos diversificados, mas quase
sempre longe do oficialismo e das festas celebrativas. Para ficar em um só
exemplo: seria possível imaginar Haroldo metido no fardão da Academia
Brasileira de Letras?
Diante dessa perda, identifico-me
com a sensibilidade de Elias Canetti,
admirável escritor búlgaro, descendente de judeus espanhóis. Canetti teve na morte uma de suas obsessões temáticas, não para cantá-la, mas, pelo
contrário, para odiá-la tão furiosa
quanto inutilmente.
Boris Fausto escreve às segundas nesta coluna.
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