São Paulo, sexta-feira, 25 de agosto de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Constituinte, concertação e coerência

PAULO RABELLO DE CASTRO

O DEBATE sobre a lei do divórcio sangrou por muitos e muitos anos até que o Congresso se dispusesse a refletir os câmbios de padrão e a evolução da sociedade brasileira em matéria de relações conjugais. Hoje -quem ousaria pensar nessa hipótese, segundo os padrões dos anos 60-, a pauta é a regularização das relações do mesmo sexo.


Não fazer uma revisão ampla da Constituição por puro medo do porvir é uma injustiça que se comete com todo o povo brasileiro


A tese da atualização constitucional por meio de uma Constituinte revisora também provoca reações conservadoras por parte da opinião pública. Agora, não são mais as assustadas mães de boas famílias, horrorizadas pelos possíveis efeitos dissolutórios do divórcio, nem a voz da igreja, alertando para os riscos incalculáveis. Quem reage à releitura da Constituição brasileira são os que vêm "ilegalidade" no conceito de uma Assembléia revisora, composta por cidadãos eleitos especificamente para tal missão, que voltarão para casa, inelegíveis, após um ano de trabalho. São também os que detectam "ilegitimidade" no futuro Congresso em votar uma "emenda de revisão" ou instituto equivalente, pois a oportunidade única de uma revisão ampla já teria passado, em 1993, conforme prevista pelo texto constitucional original. Surge, além disso, a turma do "medo" pelo receio de manipulação lulopetista da Assembléia Constituinte, obrigando constituintes neobobos a votar um texto de inspiração totalitária, supostamente "à la Chávez". Óbvio, nesse medo estaria também o horror pela possibilidade de o povo brasileiro referendar um texto ruim quando convocado para dizer "sim ou não" à Constituição revisada. Nenhum desses argumentos resiste a um simples teste de coerência. No entanto, é de coerência que mais precisamos nesse momento. A Constituição de 88 ficou para trás no tempo. Envelheceu um século em um ano quando, 300 dias após promulgada, ruíram sobre ela os conceitos intervencionistas e estatocratas erguidos pelo Muro de Berlim. Com a queda do muro, um outro mundo começou a acontecer, o do século 21, e o atual texto da nossa Carta, prolixo e minudente, não contribui de modo construtivo para a modernização da sociedade brasileira. Sabemos que os congressistas foram omissos em 93, quando não ousaram uma revisão ampla da Constituição, já então anacrônica. Mas a sociedade tem pressa, quer reencontrar o rumo do desenvolvimento perdido, quer conter o tamanho pantagruélico do Estado, quer ampliar os arranjos e as soluções locais, quer revisitar o pacto federativo, quer simplificar e reformular o sistema tributário, quer uma Previdência que capitalize e acumule para o futuro, quer pleno emprego e assistência social, embora esta só como rede de proteção social. Que a Constituição de 88, mesmo com tantas emendas, continua sendo um entrave aos desígnios da nação, poucos duvidam. Porém, que não se faça uma revisão ampla por puro medo do porvir é uma injustiça que se comete com todo o povo brasileiro. Lula acordou tarde para o debate da revisão constitucional. Já deveria ter lançado a proposta muito antes. Se o fez agora, por oportunismo político, tanto faz: se sua intenção não foi reta, menos mal, pois terá de convencer constituintes atentos, cujo interesse exclusivo será o de apresentar à sociedade brasileira um texto constitucional moderno, não paternalista, sensível aos temas do nosso século, escrito para o Brasil sair do rol dos "coitadinhos do mundo". Para tanto, não só coerência mas também concertação são necessárias em torno da proposta do presidente Lula. O senador Jefferson Péres ofereceu, neste mesmo espaço (21/5), excelentes argumentos para tal conjugação de opiniões e posições políticas, tal como o fizeram sabiamente nossos irmãos portugueses em torno da revisão do seu próprio texto constitucional, ainda na década passada. O exemplo de coerência e atualidade dos portugueses deveria servir de lição. Concertação política é a medida da cidadania sem medo e sem preconceitos. Que vençam os melhores argumentos, mas que se faça o embate da atualização constitucional por meio de uma Constituinte ampla e exclusiva, eleita em 2008, para tratar de temas políticos, econômicos e de Estado, que possa nos ajudar a superar o anacronismo formalista e burocrático do atual texto constitucional. Não deixemos que o apreço excessivo ao formato da legalidade nos impeça de aperfeiçoar o conteúdo da peça fundamental da cidadania. Afinal, a legitimidade intrínseca da Constituição reside em sua reflexiva sintonia com a sociedade que a ela se submete.
PAULO RABELLO DE CASTRO , 57, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico, chairman da SR Rating e colunista do caderno Dinheiro. Preside a RC Consultores, consultoria econômica, e o Conselho de Planejamento Estratégico da Fecomércio-SP. Foi presidente da Academia Internacional de Direito e Economia.


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