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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Senado deve aprovar projeto que prevê a criminalização de condutas homofóbicas?
NÃO
Qual é a língua da liberdade?
MARTA RODRIGUEZ DE ASSIS MACHADO e JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ
SIM, SOMOS a favor de que condutas homofóbicas sejam reprovadas pelo ordenamento jurídico brasileiro e de que seus autores sejam responsabilizados. Sim, somos a
favor da criação de mecanismos contrários a toda forma de exclusão e discriminação em razão de gênero ou
orientação sexual. Sim, apoiamos a
luta por igualdade incondicional de
direitos para homossexuais.
Mas criar crimes e penas é a melhor
maneira de lutar por igualdade, inclusão e cidadania? É a melhor forma de
lutar por uma sociedade sem preconceitos nem discriminação?
Achamos que não.
A crescente demanda por criminalização não faz distinção de classe ou
ideologia. Boa parte da sociedade
pensa que essa é a única forma de se
sentir segura e de comunicar a importância que dá a certos "bens" e "valores". Quanto mais grave a pena, mais
importante o que se quer resguardar.
Essa lógica motiva o discurso de
parte dos movimentos sociais, que vê
na sanção penal instrumento essencial na luta por seus direitos.
Criar crimes e penas dá a falsa impressão de que algo está sendo feito.
Essa estratégia tem alimentado o populismo penal, agravado a situação
dos presídios brasileiros e reforçado o
discurso da impunidade. Tal discurso
tem justificado propostas conservadoras de limitação e supressão de direitos. Nesse contexto, qualquer proposta de criar um novo crime deveria
ser avaliada com cuidado, pois, em
nome de uma indignação justa, podemos criar condições políticas para
medidas que sacrifiquem nossa liberdade. A expansão do direito penal é a
resposta de uma sociedade com medo. É preciso resistir a essa demanda
imediatista e pensar em alternativas.
A reprovação de atos discriminatórios é importante para a construção
da igualdade de direitos, mas é possível reprovar e responsabilizar sem
usar a linguagem das penas. Não devemos subestimar o poder simbólico
da sentença condenatória, que em si
mesma já comunica a reprovação da
conduta discriminatória.
A partir e para além disso, abrem-se
outras possibilidades, como a imposição de medidas de reparação (não
apenas financeira) pelo dano pessoal
e social causado ou que minimizem o
conflito. Pode-se pensar em estratégias de justiça restaurativa que promovam o encontro de vítima e ofendido num procedimento regulado
que visa a reconhecer a responsabilidade do ofensor e a construir deliberativamente eventuais sanções.
Inovações como essas devem surgir
do debate com movimentos sociais e
da avaliação de experiências concretas. Para isso, o foco do debate não pode estar na pena. Lidar com os problemas sociais usando tal linguagem exclui a possibilidade de criar processos
em que o réu veja a vítima como uma
pessoa, não como o objeto a que a reduziu ao discriminá-la. A pena fala a
mesma língua do preconceito, pois
reduz o apenado a um objeto: o "criminoso". Condenado e preso, sem direito de votar, fica excluído da "polis".
Em um processo diferente, pode
haver diálogo aberto entre indivíduos, na presença de outras vozes que
narrem suas histórias de vida. Em casos de discriminação e preconceito,
em que o meio cultural e a história
pessoal têm um peso tão grande, um
procedimento assim pode, de fato, ter
efeito sobre o ofensor. Ele pode
aprender com isso e passar a respeitar
e reconhecer outras formas de vida.
O projeto que criminaliza a discriminação por gênero e orientação sexual não se abre a inovações. Sua resposta é a criação de penas que vão de 1
a 5 anos de reclusão. Ele altera a lei
7.716/89, que prevê crimes de discriminação e preconceito de raça, cor,
etnia, religião e procedência nacional.
Considerada uma conquista do movimento negro, levanta-se a questão:
passados quase 20 anos de sua promulgação, essa lei contribuiu efetivamente para diminuir a discriminação
e o preconceito? Será que a luta de um
movimento social para reverter o
quadro de desigualdade pode ser traduzida para a língua da pena, excludente e limitadora de direitos de liberdade?
MARTA RODRIGUEZ DE ASSIS MACHADO , 30, mestre e
doutora em direito pela USP, é professora da Direito GV
(Escola de Direito de São Paulo da FGV).
JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ , 33, mestre em direito pela
USP e doutor em filosofia pela Unicamp, é professor, coordenador de publicações e editor na Direito GV.
Ambos são pesquisadores do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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