São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 2006

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Uma esquerda sem nenhum caráter

ODILON GUEDES e ORLANDO FANTAZINI


O PT, como os governos anteriores, utiliza a miséria e a carência que afligem a população brasileira como uma forma de dominação


COM O romance "Macunaíma", Mário de Andrade conseguia representar bem a forma como o "vale tudo" dominou a vida em nossas terras desde a chegada das caravelas portuguesas. Macunaíma, "o herói sem nenhum caráter", é exemplar do brasileiro que, jogado na selva que sempre foi nossa sociedade, tem de dar um jeitinho para sobreviver, não questionando o sistema, aproveitando as oportunidades que aparecem e procurando melhorar de vida passando ao largo de considerações sobre ética, legalidade, coerência pessoal ou preocupação de mudar o mundo.
Macunaíma está hoje mais vivo do que nunca, pretendendo representar a esquerda brasileira nos próceres petistas. Os expoentes do PT que, depois de 1980, galvanizaram os anseios de justiça social e transformação do país, prometendo superar a miséria e a exclusão, foram pouco a pouco se moldando às circunstâncias, reduzindo cada vez mais seus objetivos à luta pelo poder na selva do poder -alguns tombando no caminho ou se frustrando em suas ambições, mas, outros, se dando muito bem.
Quando Paulo Betti reclama, em artigo publicado nesta seção ("Tendências e Debates", dia 5/9), de estar sendo submetido a um "linchamento moral" por sua defesa do "projeto político representado pelo presidente Lula", talvez tenha alguma razão.
Ao afirmar que "não se faz política sem pôr a mão na merda", Paulo Betti angariou muito mais atenção e críticas do que merecia. Mas ele não é, de fato, o alvo das polêmicas. O alvo é o projeto petista (ou o abandono dele) e seus líderes partidários, aos quais Betti procura emprestar legitimidade. Ele apenas colocou em palavras claras o que tem sido dito por todos os dirigentes petistas desde que abandonaram suas veleidades mudancistas.
Na defesa do projeto político de Lula e do pragmatismo na política, Paulo Betti apenas reproduz didaticamente as justificativas repetidas em defesa do mensalão e do "toma lá, dá cá" que se tornou endêmico na relação do atual governo com o Congresso.
Dizem os petistas: "Nosso sistema político permite a eleição direta do presidente da República, mas não lhe garante a governabilidade". Assim, acabam "dependendo do apoio das forças do atraso político, que, em troca, pedem cargos, verbas e mesmo recursos financeiros com a desculpa de que têm dívidas de campanha."
Mas, governabilidade para que? Em que o governo Lula confrontou as "forças do atraso"? Teríamos deixado de perceber uma grande redução dos lucros dos bancos? Ou a realização de uma ampla reforma agrária? Ou a adoção pelo governo das bandeiras históricas dos movimentos ambientalista, indígena ou dos direitos humanos? O que é hipocrisia? Defender este governo como um projeto popular de esquerda, como quer Betti? Ou criticá-lo a partir da constatação de que uma proposta generosa e muito importante para a democratização de toda a sociedade brasileira degenerou nas mãos de Lula, Dirceu e seu grupo em uma busca do poder pelo poder?
É importante destacar que nossa Constituição garante uma série de institutos legais pelos quais uma força política relevante pode convocar a população a deliberar e alterar as margens da "governabilidade", ainda mais quando se está à frente do Executivo federal.
Ouvimos, em 2005, a cantilena de que as denúncias do mensalão eram um "golpe da direita" contra o "governo popular" de Lula. Agora, é a de um governo Lula "voltado para os mais pobres". O combate à pobreza é necessário e urgente, mas qual é a sustentabilidade de uma política de aumento do salário mínimo em um país cuja economia, esmagada por juros altos, retrocede em suas posições relativas às demais economias não só da Ásia mas também da América Latina?
Carente de um projeto nacional, o PT está, como os governos que o antecederam, utilizando a miséria e a carência que afligem a população brasileira como uma forma de dominação. Foi o espírito do "herói sem nenhum caráter" que, ao longo do século 20, do ademarismo ao malufismo, levou segmentos pauperizados e alienados do povo a respaldarem o "rouba, mas faz". Agora, enquanto o Brasil avança em sua terceira década perdida, o petismo no poder utiliza o social-clientelismo para buscar reeleger Lula ao mesmo tempo em que desqualifica a atividade política cidadã.
É neste contexto que, no ano de 2006, Paulo Betti encerra seu artigo pedindo que recuperemos "a cordialidade, traço de nossa cultura". Está na hora de os brasileiros serem muito menos cordiais com os governantes.

ODILON GUEDES , 59, economista, mestre em economia pela PUC-SP, é professor das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi vereador em São Paulo e é membro do Núcleo Projeto Popular (www.projetopopular.org).

ORLANDO FANTAZINI , 48, advogado, é deputado federal pelo PSOL-SP. Foi presidente da Comissão de Direitos Humanos e do Conselho de Ética da Câmara Federal.


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