São Paulo, terça-feira, 25 de setembro de 2007

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MARCOS NOBRE

O estranho caminho de Santiago

NA CINEMATOGRAFIA de João Moreira Salles, "Santiago" é o segundo exercício explícito sobre a transparência. É o filme que vem depois de "Entreatos", o documentário dos bastidores da campanha de Lula em 2002.
Em "Santiago", a promessa de transparência que não se cumpre não é simplesmente a da relação de um patrão com seu empregado mordomo, o que seria apenas óbvio. É também destino de um filme que começou a ser rodado no momento histórico que levou ao impeachment de Fernando Collor e que só foi retomado no ano do episódio do "mensalão".
Entre 1992 e 2005, a experiência que "Santiago" mimetiza é a do engodo da transparência absoluta. Não há mais segredos por desvendar. A manipulação é aberta, escancarada. Do personagem Santiago, da equipe de filmagem, do próprio narrador. João Moreira Salles deu "seu" texto para um irmão narrar. Nos créditos do filme, o nome aparece logo após o do diretor.
Alguém que conta uma história fingindo que conta uma história que de fato conta é sabidamente um enganador. Também Machado de Assis já fez isso mais de uma vez. Em "Memórias Póstumas", em "Dom Casmurro". Mas não há em "Santiago" as "rabugens do pessimismo" que fazem de Brás Cubas um autor peculiar.
A mansão modernista do filme prometia a transparência da luz do dia com que aparece todo o tempo. O cubículo em que Santiago está encerrado pelo enquadramento está longe dessa promessa dos anos 1950. Não há luz mundana que possa trazê-la de volta.
Sim, porque há paragens místicas no filme de Moreira Salles. Afinal, a ilusão real de toda a história brasileira dos últimos 50 anos, a da transparência absoluta, tem como única contrapartida no filme a idéia (explicitada em um "epílogo edificante") de que as coisas não fazem mesmo muito sentido.
Mostrar a armadilha da transparência em funcionamento mostra a grandeza do filme e do seu artesão. Mas João Moreira Salles não resiste à tentação da parábola, por irônica que seja. E o velho truque da falta de sentido do mundo continua a ser senha para escapismos rumo ao mistério.
No documentário "Nelson Freire", de 2003, o mistério é, classicamente, o do gênio. No caso de "Santiago", o mistério é o da memória. Todas as lembranças são entrecortadas abruptamente por planos de tela escura.
Há muito do misticismo mundano do cineasta japonês Ozu no filme. O que lhe falta é a dessacralização radical de Buñuel. O diretor espanhol de "O estranho caminho de Santiago" poderia ter levado João Moreira Salles para além da armadilha que seu próprio filme disseca.


MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta coluna.


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