São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

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JOÃO SAYAD

Bosch

O Brasil modernizado parece um quadro do Bosch. Dezenas de homens e mulheres desproporcionalmente pequenos e animais monstruosos se distribuem sobre a tela. Montanhas e prados ocupam dois terços do quadro; o horizonte de céu e nuvens aparece apenas para acentuar o caráter fechado e sufocante da paisagem.
Algumas figuras estão sendo tragadas por buracos na terra, outras são devoradas por bestas imaginárias com chifres, rabos e escamas ou fervem em caldeirões fumegantes. Rostos inexpressivos não mostram dor ou medo.
Os homúnculos lembram os milhões de brasileiros lutando pela sobrevivência, procurando emprego, assaltados pela violência urbana, vivendo em tocas, favelas ou sob as pontes. A confusão aparente dos quadros de Bosch se esclarece quando aprendemos os títulos -"Sete Pecados Capitais"; "A Morte do Avarento"; "Juízo Final".
No Brasil, a chave da explicação para a paisagem surrealista e desolada pode ser descoberta num canto do quadro, onde está um pequeno grupo com chapéus altos e ar taciturno -a diretoria do Banco Central. O conjunto jovem e arrogante remexe o caldeirão colocado sobre fogo forte, vermelho e cheio de luz. A cerimônia mágica fixa a taxa de juros e o destino das miseráveis figuras do quadro.
Por razões esotéricas, aumentam a taxa de juros em 0,5 ponto percentual. Gastaram US$ 1,5 bilhões. A ninguém se perguntou nada. A decisão é soberana.
O dinheiro gasto com uma penada é suficiente para construir 15 km de metrô (São Paulo tem 41 km, construídos durante 30 anos), uma usina hidroelétrica como Ilha Solteira ou milhares de empregos.
O programa "Fantástico" da semana passada mostrou erros e desperdícios dos gastos sociais. Todas as políticas têm objetivos, efeitos colaterais, desvios e erros.
Os feiticeiros criticam os gastos sociais: a universidade brasileira, porque alguns alunos poderiam pagar a mensalidade e não pagam; o programa de Aids, porque aidéticos que ganham R$ 2.000 por mês são atendidos.
Os US$ 1,5 bilhão gastos na quarta-feira reduzem apenas os preços dos setores competitivos da economia -produtos agrícolas não-exportáveis, produtos de empresas menores ou setores onde trabalham as pessoas mais pobres. Não afetam tarifas públicas (16% dos índices de preços) nem os preços dos setores oligopolizados e mais modernos da economia. Reduzem a taxa de câmbio, que não deveria ser reduzida.
A política de juros altos segura os preços competitivos, estrangulando a demanda agregada, para que não possam reagir aos aumentos de preços indexados ou não-competitivos. Como um algoz que segura a vítima por trás para que outro possa esmurrá-la mais facilmente. É política sem foco, com efeitos colaterais indesejados e muitos desvios. Maior e mais ineficiente do que o pior dos programas sociais.
Enquanto isso, bestas imaginárias atemorizam os homúnculos brasileiros, vítimas inexpressivas dos feiticeiros escondidos no canto do quadro.


João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
@ - jsayad@attglobal.net


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