São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

MARIO CESAR FLORES

Classe média e política

Nossa classe média tradicional nunca foi predominantemente estruturada sobre a pequena e média propriedades, fator de estímulo do ideário democrático e liberal. Pelo contrário: ela viveu a sedução da segurança da burocracia pública, da época colonial ao século 21, do positivismo autoritário do fim dos 1800 e início dos 1900 e, depois de 1930, do desenvolvimentismo comandado pelo Estado.
Quanto à emergente, dotada de instrução setorizada, mas carente de cultura geral, produto do desenvolvimentismo estatista e da universidade dos últimos 50 anos, tampouco ela surgiu e cresceu apoiada na pequena e média propriedades. Até mais do que a tradicional, ela é basicamente assalariada e atraída pelo serviço público, visto como garantia de emprego e aposentadoria.


A classe média estará à mão para lotar prazerosamente o serviço público da democracia jacobina


O perfil delineado, na verdade menos intenso em regiões de imigração européia da segunda metade do século 19 e início do 20, ajuda a explicar por que embora, em tese, no mundo a classe média privilegie os valores da democracia, no Brasil alguns segmentos dela se deixam fascinar pela proteção corporativa comumente associada às soluções mágicas, de lideranças fortes, chegando por vezes à complacência ou até à simpatia por infrações ao rigor democrático, com nuanças da esquerda ou direita (que, no caso, se assemelham...), quando lhes pareçam adequadas aos seus anseios e à segurança de seus "direitos".
Essa vulnerabilidade psicopolítica, compreensível e natural numa classe média de consistência precária como a nossa, é particularmente perceptível nas categorias de classe média do serviço público brasileiro que, demonstrando ausência de solidariedade entre o estrato médio de matiz estatista e a base da pirâmide social, fazem freqüentemente do "povão" o refém de suas reivindicações, ao amparo de legislação tolerante.
Beneficiária do nacional-desenvolvimentismo estatista autoritário (Vargas e regime de 1964) e da democracia de personalismo forte (Kubitschek), também praticante do desenvolvimentismo monitorado pelo Estado, nossa classe média está sofrendo hoje os efeitos da exaustão daquele modelo, juntamente com o operariado organizado e incluído, cuja identidade proletária vem sendo substituída por interesses e vicissitudes da classe média, num processo de mão dupla: ascensional (operariado) e declinante (classe média baixa).
A redução da participação na renda nacional, com a contenção no consumismo, e a intranqüilidade quanto ao emprego, poupança, saúde e previdência levam-na a se sentir espoliada e, eventualmente, à dúvida sobre a democracia na garantia de sua qualidade de vida. Tudo mais grave quando àqueles percalços se soma a insegurança decorrente da violência mal contida pelo Estado democrático. Vale lembrar, a respeito, um caso dramático do século 20, embora não o único de natureza similar: a Alemanha democrática dos 1920 tinha classe média grande e preparada, mas suas adversidades a empobreceram (ela e o operariado próximo dela) e a sujeitaram à violência; desencantada, ajudou a ascensão constitucional do nazismo, de que foi apoio.
Mesmo sob circunstâncias bem menos graves, democracia representativa clássica e divergências graves de concepções político-ideológicas no tocante aos problemas sociais e econômicos cedo ou tarde acabam gerando conflitos, nos quais a classe média exerce influência. No complicado cenário brasileiro não são impensáveis, portanto, as elaborações instituídas sob o ritual da democracia, de discutível fidelidade à ortodoxia democrática, nas quais o Estado avulta como ator tutelar, provedor de proteção e benesses. Tudo ao estilo da "democracia" messiânico-salvacionista plebiscitada (ou referendada...) de Luiz Napoleão -ou, mais perto no tempo e na geografia, de Chávez-, com a benção engajada de parte da classe média e do operariado incluído.
A burguesia (capital), em geral cooptada pelo apoio do Estado cartorial nacional-desenvolvimentista cujo custo é debitado ao povo (inflação, preços/tarifas maiores) e à grande massa amorfa, fica indiferente ou favorável porque esperançosa no sebastianismo assistencialista.
O risco existe, por ora pequeno, mas não nulo. A classe média, que vocifera democracia, mas é fã do estatismo provedor e protetor, estará à mão para lotar prazerosamente o serviço público da democracia jacobina...

Mario Cesar Flores, 73, é almirante-de-esquadra reformado. Foi secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (governo Itamar Franco) e ministro da Marinha (governo Collor).


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