São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

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PLINIO ARRUDA SAMPAIO

Voto crítico em São Paulo

A política abrange tanto a negociação como a intransigência: em uma conjuntura determinada, o correto é negociar, abrindo mão de algumas coisas para conseguir outras; numa conjuntura diferente, convém marcar posição, sacrificando algo imediato a fim de afirmar um princípio ético ou político importante no futuro. O desdobramento dos acontecimentos evidencia retroativamente o acerto ou o erro de qualquer dessas decisões.
O voto "crítico" anunciado por um grupo de pessoas em São Paulo visa unicamente marcar posição. Uma vez que não se concorda com nenhum dos candidatos a prefeito, esse é o voto que contribui mais para o avanço da luta pela transformação da sociedade brasileira.


Embora com diferenças, os candidatos à Prefeitura de São Paulo situam-se politicamente no mesmo campo


Descarta-se o voto no "mal menor" porque não se trata de comparar os candidatos em termos de eficiência administrativa. O motivo da anulação é mais profundo: visa mostrar, em um momento de confusão, que, embora com diferenças, os candidatos à Prefeitura de São Paulo situam-se politicamente no mesmo campo -o campo da política de manutenção de uma ordem econômica e social iníqua.
Basta ver que, tanto no programa como no discurso, nenhum deles enfrentou a questão das transformações estruturais que precisam ser feitas na política econômica do país e na dinâmica de crescimento caótico da cidade.
Ora, qualquer pessoa de bom senso sabe que nenhum dos problemas que afligem os paulistanos poderá ser efetivamente resolvido sem tais transformações. Afora os ataques recíprocos, ambas as candidaturas limitam-se a exaltar as mirabolantes obras e serviços que farão nos quatro anos de mandato.
O ponto é precisamente este: realizar obras e serviços sem alterar a dinâmica de crescimento da cidade não resolverá os problemas da população.
Entre 1958 e 1962, o governador Carvalho Pinto, com seu Plano de Ação, cobriu a periferia de São Paulo com redes de água e esgoto, prédios escolares, postos de saúde, edifícios de delegacias e fóruns distritais num volume provavelmente não alcançado por nenhum outro governante nestes últimos 50 anos. Acaso isso transformou o "acampamento" que era São Paulo nos anos 60 em uma cidade civilizada, capaz de proporcionar um mínimo de qualidade de vida à sua população periférica? De modo nenhum. Os bairros que então formavam a periferia da cidade tornaram-se bairros de classe média, e novos bairros periféricos, tão destituídos de melhoramentos urbanos como os anteriores, formaram-se alguns quilômetros mais adiante.
Qual das candidaturas tem coragem de propor o estancamento desse processo perverso? Qual delas aproveitou a campanha para criar uma correlação de forças capaz de enfrentar os grupos econômicos e sociais que comandam as políticas urbanas em São Paulo? Quem mencionou que, para mudar as prioridades da cidade, é necessário enfrentar os credores do Estado brasileiro, que, amparados na Lei de Responsabilidade Fiscal, condenam o município à penúria? Rios de dinheiro foram gastos na propaganda eleitoral, mas nada se disse sobre o capital especulativo que determina o vetor de crescimento da cidade, sobre as empresas prestadoras de serviço que aprisionam o orçamento municipal, sobre a prioridade absoluta dada ao transporte individual -causa última dos insolúveis problemas de transporte.
O voto crítico foi acusado de favorecer a candidatura Serra, dando um novo alento aos tucanos e ameaçando a reeleição do Lula em 2006.
Não é essa a intenção nem há o menor risco dessa conseqüência, porque as razões do voto crítico por certo não chegarão imediatamente até a grande massa dos eleitores, dada a cumplicidade de grande parte da mídia com a tese da inexistência de alternativas ao neoliberalismo. Mas, de qualquer modo, cabe perguntar: que resultado eleitoral poderá fazer Lula rever a desastrosa política econômica que adotou nestes dois anos, a vitória ou a derrota em São Paulo?
Nas circunstâncias atuais, só o voto crítico poderá levar o eleitor a perceber que, apesar de toda a retórica "democrática", esta campanha eleitoral foi muito antidemocrática, pois impediu um debate real das alternativas existentes para melhorar, de fato, a vida dos paulistanos.
Ao votar nulo, a fim de marcar posição, afirma-se que a luta política é feita de muitas refregas, muitos eventos, muitas conjunturas diferenciadas. A memória de um gesto político incompreendido no momento de sua efetivação pode ser decisiva em momento futuro, quando o desenrolar dos fatos, mais do que as palavras, demonstrar a sua correção.

Plinio Arruda Sampaio, 74, advogado e economista, é presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária. Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação).


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