São Paulo, segunda-feira, 25 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Conspiração contra a impunidade

FLÁVIA PIOVESAN e SILVIA PIMENTEL

"Sobrevivi, posso contar." É este o título do livro autobiográfico de Maria da Penha, mulher, farmacêutica, vítima de duas tentativas de homicídio cometidas por seu então companheiro, em seu próprio domicílio, em Fortaleza, em 1983. Os tiros contra ela disparados (enquanto dormia), a tentativa de eletrocutá-la, as agressões sofridas ao longo de sua relação matrimonial, embora tenham deixado Maria da Penha paraplégica aos 38 anos, não foram capazes de calar a sua voz.
Apesar de condenado pela Justiça local, após 15 anos o réu ainda permanecia em liberdade, valendo-se de sucessivos recursos processuais contra decisão condenatória do Tribunal do Júri. A impunidade e a inefetividade do sistema judicial diante da violência doméstica contra as mulheres no Brasil motivou, em 1998, a apresentação do caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, por meio de petição conjunta das entidades Cejil-Brasil (Centro para a Justiça e o Direito Internacional) e Cladem-Brasil (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher).
Em 2001, após 18 anos da prática do crime, em decisão inédita, a Comissão Interamericana condenou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando ao Estado, dentre outras medidas, "prosseguir e intensificar o processo de reforma, a fim de romper com a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra as mulheres no Brasil" (Informe 54/01, de 16/4/01).
A decisão fundamentou-se na violação, pelo Estado, dos deveres assumidos em face da ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que consagram parâmetros protetivos mínimos concernentes à defesa da dignidade humana. É a primeira vez que um caso de violência doméstica leva à condenação de um país, no âmbito do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
Em 31/10/02, finalmente, houve a prisão do réu, no Estado da Paraíba. O ciclo de impunidade se encerrava, após 19 anos. As demais medidas recomendadas pela Comissão Interamericana são objeto de um termo de compromisso a ser firmado entre as entidades peticionárias e o Estado brasileiro.
Ações estatais são urgentes e necessárias para o enfrentamento da violência que acomete milhares de mulheres no Brasil. O caso de Maria da Penha reflete um padrão geral e sistemático de violência contra a mulher que em nosso país tem como resposta, via de regra, a impunidade. A violência contra a mulher é "qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública, como na esfera privada". A violência baseada no gênero ocorre quando um ato é dirigido contra uma mulher porque ela é mulher, ou quando atos afetam as mulheres de forma desproporcional.


Ações estatais são urgentes para enfrentar a violência que acomete milhares de mulheres no Brasil


Dados da ONU demonstram que a violência doméstica é a principal causa de lesões em mulheres entre 15 e 44 anos no mundo, o que caracteriza a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado, que alcança um elevado número de mulheres.
É dever do Estado brasileiro implementar políticas públicas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, em conformidade com as normas internacionais e constitucionais. Considerando o alto grau de complexidade dessa violência, essas medidas hão de compreender:
a) A adoção de legislação específica sobre a matéria, regulamentando assim o art. 226, parágrafo 8, da Constituição e o art. 7º, "c", da convenção;
b) A instituição de mecanismos judiciais e administrativos, com a participação de organizações de mulheres, que permitam uma justiça mais célere e acessível e garantam assistência legal às vítimas de violência, bem como medidas de proteção ou outros meios de compensação justos e eficazes;
c) A criação de um sistema nacional de dados sobre a violência doméstica, com indicadores técnico-científicos que avaliem a incidência da violência contra a mulher e identifiquem o impacto e o alcance de políticas públicas adotadas;
d) A realização de campanhas educativas de combate à violência doméstica;
e) A promoção de cursos de capacitação, para os operadores do direito, que incorporem a perspectiva de gênero;
e) A previsão de serviços de apoio à vítima e de reabilitação para os perpetradores da violência doméstica;
f) E a adoção de um foco interdisciplinar para o enfrentamento da violência, que permita o diálogo e a interação das diversas agências envolvidas com a administração da justiça.
Que nesta data simbólica, 25 de novembro, em que se celebra o Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher, o caso de Maria da Penha possa romper com a invisibilidade que acoberta esse grave padrão de violência, de que são vítimas tantas mulheres. Que seja símbolo de uma necessária conspiração contra a impunidade.

Flávia Piovesan, 34, professora de direito constitucional e direitos humanos da PUC-SP, é procuradora do Estado e membro do Cladem-Brasil. Silvia Pimentel, 62, professora de filosofia do direito da PUC-SP, é coordenadora nacional do Cladem-Brasil.


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