São Paulo, terça-feira, 25 de novembro de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Traga o regador dos tempos antes
JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI
Existe um parasitismo predatório crescente do setor privado sobre o público, iniciado em 1990 e mantido até agora, caracterizado não só pela perversa segunda porta, que despreza a demanda reprimida dos usuários do SUS, usando 25% dos hospitais universitários para vender serviços a particulares, como também e principalmente pela falta do ressarcimento, garantido pela lei 9.656, mas precariamente efetivado pelos planos de saúde, que utilizam, sem pedir licença, cerca de 15% dos hospitais públicos, especialmente para procedimentos mais complexos e de alto custo, cuja cobrança é ignorada pela Agência Nacional de Saúde. Essa questão fica muito mais grave nos 1.700 hospitais privados contratados que atendem ao mesmo tempo planos de saúde e SUS. Quando alguma cobrança chega ao fim, em geral dois ou mais anos depois, o plano pede parcelamento em 60 meses, o que é frequente e generosamente concedido pela ANS. A fraude calculada pela CPI do Congresso Nacional, de 23% do faturamento do SUS, em 1994, foi quase institucionalizada, com um "controle e avaliação" cronicamente escasso, em que as contas digitalizadas por firmas terceirizadas -algumas delas pertencentes a egressos da Dataprev- são enviadas diretamente ao Datasus (sucedânea da Dataprev), reduzindo a identificação de incorreções nos faturamentos. A isso ainda se deve acrescentar o pagamento dos procedimentos ambulatoriais por estimativa, que podem até não ser realizados, mas são pagos, e a ausência de uma atenção primária eficiente que facilite a progressão de doenças preveníveis, sabendo-se que o gasto com tratamento em estágios avançados é de três a cinco vezes maior do que na fase inicial. Somando tudo, podemos entender por que o aumento de verbas não tem significado melhora da saúde. Com a vinculação de recursos (emenda 29) respeitada não só pelo governo federal, mas também pelos estaduais e municipais, adicionada -e isso é fundamental- a uma gestão descentralizada, moderna e sem desvios, poderemos diminuir, em poucos anos, de 29/ 1.000 para 10/1.000 a mortalidade infantil, de 100/100.000 para 10/100.000 a mortalidade materna, de 10/100.000 para 3/100.000 a mortalidade por câncer de útero, de 8/100.000 para 3/100.000 a por câncer de mama e pela metade aquela por doenças hepáticas e cardiovasculares. Economizaríamos anualmente milhões de anos de vida, devolvendo-os com qualidade à população brasileira. Esse é o salto possível que a saúde está esperando desde 1988, quando colocamos o SUS na Constituição. A visão informada, holística e o enfrentamento corajoso e inteligente da complexidade constituem o único caminho -aquele da mudança tantas vezes desejada. Cada governo é um recomeço e, às vezes, uma frustração. Por isso, recorro a um poema de Mauro Salles: "Supere as amarras do passado/ Lance um último olhar ao que existia/ Aplaine o campo que restou/ Traga o regador dos tempos antes/ Plante a nova semente da esperança". José Aristodemo Pinotti, 68, deputado federal pelo PFL-SP, é professor titular de ginecologia da USP. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Dino Fiore Capo: Por uma OAB melhor Índice |
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