São Paulo, terça-feira, 25 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Traga o regador dos tempos antes

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

O governo federal coloca 3% do PIB em saúde, quando na maioria dos países esse percentual é maior do que 10% e a OMS (Organização Mundial da Saúde) pede o mínimo de 5%.
Seria absurdo, nessas circunstâncias, aceitar a transferência de 13% do orçamento da saúde para o Programa Fome Zero, em mais uma "escolha de Sofia" no âmbito social, sabendo de antemão que o destino final desses recursos é o superávit primário e os juros para os bancos, que este ano chegam a R$ 153,9 bilhões -35% a mais do que em 2002. O Congresso Nacional cumpriu seu papel, pressionou, e o governo aparentemente cedeu.
Nada disso, entretanto, resultará em benefício para o usuário se não forem corrigidos os defeitos estruturais que fazem escorrer boa parte dos recursos por fendas cronicamente abertas no sistema. Prova é que, mesmo dobrando o orçamento (de R$ 14,7 bilhões para R$ 28,2 bilhões) entre 1995 e 2000, assistimos ao recrudescimento da mortalidade por sarampo e catapora e ao aumento significante de mortalidade por tuberculose, para citar três exemplos de óbitos que não deveriam existir no nosso estágio de desenvolvimento. A mortalidade materna, que é uma vergonha nacional, não cai na cidade de São Paulo desde 1995; o acesso e o acolhimento no serviço público são cada vez piores; os hospitais públicos e filantrópicos estão à beira da falência, começando a ficar sucateados pela falta de renovação e manutenção dos equipamentos -há poucas semanas, na cidade de São Paulo, foram fechadas áreas de dois deles: Santa Casa e Santa Marcelina.
Na realidade, os progressos que ocorreram na saúde brasileira, na última década, foram na sua maioria inerciais, não decorreram das mudanças estruturais que seriam necessárias para colocar o SUS -que é um exemplo de acerto constitucional- concretamente e com modernidade na prática, e o paradoxo "recursos que crescem e saúde que não melhora" mostra que a questão não pode ser resolvida somente com acréscimos financeiros.



Os progressos que ocorreram na saúde brasileira na última década foram na sua maioria inerciais

Existe um parasitismo predatório crescente do setor privado sobre o público, iniciado em 1990 e mantido até agora, caracterizado não só pela perversa segunda porta, que despreza a demanda reprimida dos usuários do SUS, usando 25% dos hospitais universitários para vender serviços a particulares, como também e principalmente pela falta do ressarcimento, garantido pela lei 9.656, mas precariamente efetivado pelos planos de saúde, que utilizam, sem pedir licença, cerca de 15% dos hospitais públicos, especialmente para procedimentos mais complexos e de alto custo, cuja cobrança é ignorada pela Agência Nacional de Saúde.
Essa questão fica muito mais grave nos 1.700 hospitais privados contratados que atendem ao mesmo tempo planos de saúde e SUS. Quando alguma cobrança chega ao fim, em geral dois ou mais anos depois, o plano pede parcelamento em 60 meses, o que é frequente e generosamente concedido pela ANS. A fraude calculada pela CPI do Congresso Nacional, de 23% do faturamento do SUS, em 1994, foi quase institucionalizada, com um "controle e avaliação" cronicamente escasso, em que as contas digitalizadas por firmas terceirizadas -algumas delas pertencentes a egressos da Dataprev- são enviadas diretamente ao Datasus (sucedânea da Dataprev), reduzindo a identificação de incorreções nos faturamentos.
A isso ainda se deve acrescentar o pagamento dos procedimentos ambulatoriais por estimativa, que podem até não ser realizados, mas são pagos, e a ausência de uma atenção primária eficiente que facilite a progressão de doenças preveníveis, sabendo-se que o gasto com tratamento em estágios avançados é de três a cinco vezes maior do que na fase inicial. Somando tudo, podemos entender por que o aumento de verbas não tem significado melhora da saúde.
Com a vinculação de recursos (emenda 29) respeitada não só pelo governo federal, mas também pelos estaduais e municipais, adicionada -e isso é fundamental- a uma gestão descentralizada, moderna e sem desvios, poderemos diminuir, em poucos anos, de 29/ 1.000 para 10/1.000 a mortalidade infantil, de 100/100.000 para 10/100.000 a mortalidade materna, de 10/100.000 para 3/100.000 a mortalidade por câncer de útero, de 8/100.000 para 3/100.000 a por câncer de mama e pela metade aquela por doenças hepáticas e cardiovasculares. Economizaríamos anualmente milhões de anos de vida, devolvendo-os com qualidade à população brasileira.
Esse é o salto possível que a saúde está esperando desde 1988, quando colocamos o SUS na Constituição. A visão informada, holística e o enfrentamento corajoso e inteligente da complexidade constituem o único caminho -aquele da mudança tantas vezes desejada.
Cada governo é um recomeço e, às vezes, uma frustração. Por isso, recorro a um poema de Mauro Salles: "Supere as amarras do passado/ Lance um último olhar ao que existia/ Aplaine o campo que restou/ Traga o regador dos tempos antes/ Plante a nova semente da esperança".

José Aristodemo Pinotti, 68, deputado federal pelo PFL-SP, é professor titular de ginecologia da USP. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).


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