São Paulo, quinta-feira, 25 de novembro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Árvores da Aids

Wangari Maathai é o nome da bióloga e ativista queniana agraciada com o Nobel da Paz de 2004. Em 1971, Maathai tornou-se a primeira mulher centro-africana a conseguir um título de doutorado. Em 1977, fundou o Movimento Cinturão Verde, uma organização de mulheres dedicada ao reflorestamento que plantou 30 milhões de árvores.
Maathai atravessou a ponte que conecta o ambientalismo à política e, muitas vezes, desafiou o poder do ex-ditador Daniel Arap Moi. Os ambientalistas celebraram sua consagração como um reconhecimento do nexo entre a defesa da paz e a do ambiente. Mas, quando se trata da Aids, a bióloga Maathai revela desprezo pela ciência. Após a entrega do Nobel, ela reiterou sua antiga opinião de que o vírus da Aids "foi criado por cientistas para a guerra biológica", com a finalidade de dizimar os negros africanos, e voltou a afirmar que o uso de preservativos não é eficaz contra a transmissão do vírus.
As opiniões de Maathai participam de uma corrente de teorias conspirativas que acompanharam a difusão da epidemia na África. Outras versões dessas teorias asseguram que a Aids não tem origem viral, mas ambiental. Há ainda os que julgam os coquetéis anti-Aids nocivos à saúde. Fincando uma bandeira nesse território diversificado, o cardeal Alfonso Lopez Trujillo, do Vaticano, argumentou que, por ser muito pequeno, o vírus da Aids atravessa os preservativos.
As teorias conspirativas de diversas origens foram incorporadas por diversos Estados africanos, que as usaram como base "científica" para justificar prioridades orçamentárias que não contemplavam o combate à Aids. Na África do Sul, até há pouco o governo de Thabo Mbeki negava a existência de uma pandemia de Aids e alocava recursos para pesquisas sobre as "verdadeiras" causas da doença.
Entre os 39 milhões de infectados pelo HIV no mundo, 25 milhões vivem na África subsaariana. Ao contrário do que parece, as causas da pandemia não se encontram na pobreza, mas na política. Na África do Sul, com PIB per capita de US$ 10,7 mil, quase 22% da população adulta é portadora do HIV. Em Uganda, com PIB per capita de US$ 1,8 mil, a prevalência do HIV entre adultos reduziu-se de 12% para 4% na última década. A diferença é que Uganda distribuiu preservativos à população, forneceu coquetéis às gestantes e investiu em saneamento básico, garantindo a segurança da mistura de leite em pó com água ministrada aos bebês de mães portadoras do vírus.
Na África central e austral, a pandemia dizima povoados inteiros, que exibem campos sem cultivo e rebanhos vagando soltos. Em algumas áreas, imagens orbitais captadas com intervalo de uma década evidenciam a recolonização da paisagem pela savana. Nesses lugares, é a Aids que planta árvores.
Doenças infecciosas, em sua maior parte, vitimam principalmente crianças e idosos. A epidemia de Aids na África tem efeitos similares aos da guerra, vitimando principalmente os adultos. Mas, diferentemente da guerra, a Aids atinge homens e mulheres em proporção semelhante. Do ponto de vista demográfico, ela tende a produzir sociedades de adolescentes órfãos. Essas massas de jovens formam a base de recrutamento das milícias armadas que assolam o continente. As teorias conspirativas ecoadas pela detentora do Nobel da Paz semeiam a guerra.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.

magnoli@ajato.com.br


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