São Paulo, sábado, 25 de novembro de 2006

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ELVIRA LOBATO

A Vale e os xicrins

O CONFLITO entre os índios xicrins e a Vale do Rio Doce lembra a resistência dos gauleses contra o poder romano retratada nos gibis de Asterix.
De um lado, indígenas que cobram ajuda financeira. Do outro, a segunda maior companhia de mineração do mundo, que acaba de comprar outra gigante do ramo por US$ 17 bilhões. Ela diz que chegou ao limite da paciência com os índios e não aceita ser alvo de chantagem, referindo-se à ocupação de Carajás por 200 guerreiros com bordunas. As armas, admite a empresa, eram rudimentares, mas os indígenas mostraram organização e, comunicando-se por rádios, paralisaram a produção da mina por dois dias.
Como uma companhia que se pretende global compra uma briga tão desigual com uma comunidade de mil índios? Os R$ 9 milhões que prometera repassar aos xicrins em 2006 equiparam-se ao lucro obtido pela empresa em apenas quatro horas e meia no último trimestre.
A Vale alega que não quer se dobrar à "chantagem" e que cansou de financiar o consumismo de lideranças. Muitos antropólogos estudaram o impacto da monetização sobre os hábitos de vida dos xicrins e constataram que ela trouxe problemas como a reprodução da desigualdade social do mundo capitalista nas aldeias e o consumismo. Mas foi a própria Vale que, a partir de 1999, assinou contratos para repassar o dinheiro diretamente às associações indígenas, tirando da Funai o papel de intermediária. Os índios ficaram cada vez mais dependentes da "mesada" da Vale e passaram a se endividar no comércio por conta do que teriam a receber da empresa.
A história da Vale com os xicrins -e com outras tribos com igual potencial explosivo- tem uma sucessão de erros que comprometem cinco governos.
Há 20 anos, no governo Sarney, o Senado autorizou o Executivo a dar à Vale do Rio Doce -então uma estatal federal- a concessão de uso de 412 mil hectares da União em torno da jazida de Carajás. Em troca, ela prometeu dar assistência aos índios das áreas próximas em saúde, educação etc.
Até hoje, o Estado do Pará reivindica a propriedade daquelas terras e questiona a legalidade da resolução do Senado, em um processo que se arrasta no STF.
Até o final de outubro, a empresa cumpriu o compromisso que tinha assumido no convênio assinado em 1989. Mas, agora, alega que jamais recebeu a concessão de uso das terras da União, objeto da resolução do Senado, e que sempre ajudou os índios por liberalidade. Note-se que a empresa foi privatizada em maio de 1997 e não denunciou a inexistência da concessão naquela época.
São duas décadas de histórias mal-explicadas.


ELVIRA LOBATO é repórter especial da Folha.

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