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ELVIRA LOBATO
A Vale e os xicrins
O CONFLITO entre os índios
xicrins e a Vale do Rio Doce
lembra a resistência dos
gauleses contra o poder romano
retratada nos gibis de Asterix.
De um lado, indígenas que cobram ajuda financeira. Do outro, a
segunda maior companhia de mineração do mundo, que acaba de
comprar outra gigante do ramo por
US$ 17 bilhões. Ela diz que chegou
ao limite da paciência com os índios e não aceita ser alvo de chantagem, referindo-se à ocupação de
Carajás por 200 guerreiros com
bordunas. As armas, admite a empresa, eram rudimentares, mas os
indígenas mostraram organização
e, comunicando-se por rádios, paralisaram a produção da mina por
dois dias.
Como uma companhia que se
pretende global compra uma briga
tão desigual com uma comunidade
de mil índios? Os R$ 9 milhões que
prometera repassar aos xicrins em
2006 equiparam-se ao lucro obtido
pela empresa em apenas quatro
horas e meia no último trimestre.
A Vale alega que não quer se dobrar à "chantagem" e que cansou
de financiar o consumismo de lideranças. Muitos antropólogos estudaram o impacto da monetização
sobre os hábitos de vida dos xicrins
e constataram que ela trouxe problemas como a reprodução da desigualdade social do mundo capitalista nas aldeias e o consumismo.
Mas foi a própria Vale que, a partir de 1999, assinou contratos para
repassar o dinheiro diretamente às
associações indígenas, tirando da
Funai o papel de intermediária. Os
índios ficaram cada vez mais dependentes da "mesada" da Vale e
passaram a se endividar no comércio por conta do que teriam a receber da empresa.
A história da Vale com os xicrins
-e com outras tribos com igual potencial explosivo- tem uma sucessão de erros que comprometem
cinco governos.
Há 20 anos, no governo Sarney, o
Senado autorizou o Executivo a dar
à Vale do Rio Doce -então uma estatal federal- a concessão de uso
de 412 mil hectares da União em
torno da jazida de Carajás. Em troca, ela prometeu dar assistência
aos índios das áreas próximas em
saúde, educação etc.
Até hoje, o Estado do Pará reivindica a propriedade daquelas
terras e questiona a legalidade da
resolução do Senado, em um processo que se arrasta no STF.
Até o final de outubro, a empresa
cumpriu o compromisso que tinha
assumido no convênio assinado
em 1989. Mas, agora, alega que jamais recebeu a concessão de uso
das terras da União, objeto da resolução do Senado, e que sempre ajudou os índios por liberalidade. Note-se que a empresa foi privatizada
em maio de 1997 e não denunciou a
inexistência da concessão naquela
época.
São duas décadas de histórias
mal-explicadas.
ELVIRA LOBATO é repórter especial da Folha.
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