|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OTAVIO FRIAS FILHO
Natal desencantado
Todo ano as pessoas lamentam o
consumismo desenfreado que tomou conta do Natal, expulsando o
que teria sido alguma vez o "verdadeiro" espírito natalino. Esse lamento se
tornou um hábito transmitido entre
as gerações, pois não houve um mitológico Natal no passado que fosse
isento de comércio e dedicado à solidariedade.
Mas havia uma quantidade maior de
datas e festas, quase todas marcadas
no calendário católico. É sintomático
que delas só tenham restado intactas,
e até fortalecidas, as duas ligadas aos
prazeres do corpo -Ano Novo e Carnaval- e as duas que oferecem ao comércio oportunidade segura de vendas e ao consumidor ocasião de consumir: Natal e Páscoa.
A sobrevivência dessas festas é reflexo de uma cultura não só hedonista,
em que o prazer individual tem primazia sobre quase tudo, mas calculista, baseada na troca, na compra e na
venda. O presente pode ser visto como
encenação ritualística daquilo que é
praticado ao longo do ano todo: mercadorias circulando sob a mediação
do dinheiro.
Tomado em perspectiva, esse sentimento não é novo. No começo do século passado, o sociólogo alemão Max
Weber lhe deu o nome de "desencantamento do mundo". Por meio desse
processo, o mundo foi despido de suas
qualidades mágicas e irracionais, passando a ser visto pelos homens como
um maquinismo regido pelo cálculo.
Weber distinguiu dois tempos no
"desencantamento". As grandes religiões ocidentais, sobretudo o judaísmo e o protestantismo, repeliram a
magia por completo, confinando o
sentimento místico à subjetividade do
asceta. Num tempo seguinte, a ciência
ocidental estabeleceu o cálculo e a
prova empírica como critérios universais.
A confluência entre os dois aspectos
-protestantismo e ciência- deu impulso ao capitalismo moderno, que
surgiu nos países do norte europeu e
nos Estados Unidos e hoje domina o
planeta. Corresponde a uma mentalidade em que o cálculo racional em termos de ganho e perda prevalece sobre
as demais ordens de consideração.
O conceito de Weber é discutido em
detalhes no recente livro do sociólogo
Antônio Flávio Pierucci, "O Desencantamento do Mundo" (Editora 34,
236 págs.) A leitura traz de volta a
atualidade das idéias do escritor alemão. O autor revela, por exemplo, certa passagem obscura em que Weber
alude a um possível "reencantamento
do mundo" na esfera da intimidade.
Esse domínio integral da mercadoria, essa nossa civilização do shopping
center talvez seja o último passo do
"desencantamento" iniciado tanto
tempo atrás, na época dos profetas, e
que culminou com a derrocada do socialismo há quase 20 anos. O fim das
utopias, como se convencionou chamar nossa época, significa que o mundo está enfim livre de toda mágica.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Lamento de Natal Próximo Texto: Frases
Índice
|