UOL




São Paulo, quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OTAVIO FRIAS FILHO

Natal desencantado

Todo ano as pessoas lamentam o consumismo desenfreado que tomou conta do Natal, expulsando o que teria sido alguma vez o "verdadeiro" espírito natalino. Esse lamento se tornou um hábito transmitido entre as gerações, pois não houve um mitológico Natal no passado que fosse isento de comércio e dedicado à solidariedade.
Mas havia uma quantidade maior de datas e festas, quase todas marcadas no calendário católico. É sintomático que delas só tenham restado intactas, e até fortalecidas, as duas ligadas aos prazeres do corpo -Ano Novo e Carnaval- e as duas que oferecem ao comércio oportunidade segura de vendas e ao consumidor ocasião de consumir: Natal e Páscoa.
A sobrevivência dessas festas é reflexo de uma cultura não só hedonista, em que o prazer individual tem primazia sobre quase tudo, mas calculista, baseada na troca, na compra e na venda. O presente pode ser visto como encenação ritualística daquilo que é praticado ao longo do ano todo: mercadorias circulando sob a mediação do dinheiro.
Tomado em perspectiva, esse sentimento não é novo. No começo do século passado, o sociólogo alemão Max Weber lhe deu o nome de "desencantamento do mundo". Por meio desse processo, o mundo foi despido de suas qualidades mágicas e irracionais, passando a ser visto pelos homens como um maquinismo regido pelo cálculo.
Weber distinguiu dois tempos no "desencantamento". As grandes religiões ocidentais, sobretudo o judaísmo e o protestantismo, repeliram a magia por completo, confinando o sentimento místico à subjetividade do asceta. Num tempo seguinte, a ciência ocidental estabeleceu o cálculo e a prova empírica como critérios universais.
A confluência entre os dois aspectos -protestantismo e ciência- deu impulso ao capitalismo moderno, que surgiu nos países do norte europeu e nos Estados Unidos e hoje domina o planeta. Corresponde a uma mentalidade em que o cálculo racional em termos de ganho e perda prevalece sobre as demais ordens de consideração.
O conceito de Weber é discutido em detalhes no recente livro do sociólogo Antônio Flávio Pierucci, "O Desencantamento do Mundo" (Editora 34, 236 págs.) A leitura traz de volta a atualidade das idéias do escritor alemão. O autor revela, por exemplo, certa passagem obscura em que Weber alude a um possível "reencantamento do mundo" na esfera da intimidade.
Esse domínio integral da mercadoria, essa nossa civilização do shopping center talvez seja o último passo do "desencantamento" iniciado tanto tempo atrás, na época dos profetas, e que culminou com a derrocada do socialismo há quase 20 anos. O fim das utopias, como se convencionou chamar nossa época, significa que o mundo está enfim livre de toda mágica.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Lamento de Natal
Próximo Texto: Frases

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.