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São Paulo, quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Lamento de Natal

RIO DE JANEIRO - Misturar Natal com órfão perdido na tempestade parece cena de um romance de Dickens, mas é seguramente um dos temas que mais rendem emoção e lágrimas. Pois aí está; sou órfão há algum tempo, perdi pai e mãe, mas já era adulto -e como!-, perdi outras coisas e nada achei de interessante para substitui-las. Mas a cada Natal penso sempre na desgraça que não tive e na tempestade que não enfrentei.
Lembrei os romances de Dickens, mas queria lembrar um filme antigo, acho que sou o único sobrevivente que ainda se lembra dele. Tinha uma péssima atriz, mas deslumbrante em sua carnação, a húngara Ilona Massey, e o cantor Nelson Eddy, cafonérrimo ator dos filmes da Metro daqueles tempos.
Não importa o enredo em si, mas uma cena que se passa num Natal. Durante a guerra de 1914-1918, uma guerra ainda de trincheiras, tropas alemãs e aliadas imobilizadas pela neve estão a poucos metros de distância umas das outras. Um soldado começa a cantar "Noite Feliz" em inglês. Do outro lado da terra-de-ninguém, começam também a cantar, só que em alemão, que me parece ser a língua original da canção que se tornou vinheta musical da temporada natalina, ao menos no Ocidente.
Há closes de soldados com os olhos cheios de lágrimas, lágrimas alemãs e aliadas. E na platéia, platéia da Tijuca, onde não havia um único alemão ou aliado, há soluços esparsos e abafados.
Sempre desconfiei dessa música de Natal. Tenho ímpetos homicidas quando a ouço, em qualquer situação. Prefiro o "Adeste Fidelis" ou aquela marchinha de Assis Valente, que pede a felicidade, "um brinquedo que não tem".
Para encerrar este lamento de Natal, nada melhor do que o sovado refrão dos textos antigos: "Bimbalham os sinos". É isso aí; com os sinos bimbalhando, mastigo sozinho o meu Natal e me considero um órfão na tempestade.


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