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CARLOS HEITOR CONY
Lamento de Natal
RIO DE JANEIRO - Misturar Natal com órfão perdido na tempestade parece cena de um romance de Dickens,
mas é seguramente um dos temas
que mais rendem emoção e lágrimas.
Pois aí está; sou órfão há algum tempo, perdi pai e mãe, mas já era adulto
-e como!-, perdi outras coisas e
nada achei de interessante para substitui-las. Mas a cada Natal penso
sempre na desgraça que não tive e na
tempestade que não enfrentei.
Lembrei os romances de Dickens,
mas queria lembrar um filme antigo,
acho que sou o único sobrevivente
que ainda se lembra dele. Tinha uma
péssima atriz, mas deslumbrante em
sua carnação, a húngara Ilona Massey, e o cantor Nelson Eddy, cafonérrimo ator dos filmes da Metro daqueles tempos.
Não importa o enredo em si, mas
uma cena que se passa num Natal.
Durante a guerra de 1914-1918, uma
guerra ainda de trincheiras, tropas
alemãs e aliadas imobilizadas pela
neve estão a poucos metros de distância umas das outras. Um soldado começa a cantar "Noite Feliz" em inglês. Do outro lado da terra-de-ninguém, começam também a cantar, só
que em alemão, que me parece ser a
língua original da canção que se tornou vinheta musical da temporada
natalina, ao menos no Ocidente.
Há closes de soldados com os olhos
cheios de lágrimas, lágrimas alemãs e
aliadas. E na platéia, platéia da Tijuca, onde não havia um único alemão
ou aliado, há soluços esparsos e abafados.
Sempre desconfiei dessa música de
Natal. Tenho ímpetos homicidas
quando a ouço, em qualquer situação. Prefiro o "Adeste Fidelis" ou
aquela marchinha de Assis Valente,
que pede a felicidade, "um brinquedo
que não tem".
Para encerrar este lamento de Natal, nada melhor do que o sovado refrão dos textos antigos: "Bimbalham
os sinos". É isso aí; com os sinos bimbalhando, mastigo sozinho o meu
Natal e me considero um órfão na
tempestade.
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