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São Paulo, quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um Natal solidário

CLÁUDIO HUMMES

Tornou-se um hábito excelente, humano e cristão associar o Natal à solidariedade para com os necessitados. A campanha por um "Natal sem Fome", iniciada por nosso querido e saudoso Betinho, e outras campanhas com a mesma finalidade fazem parte obrigatória do modo como entendemos o Natal. De fato, a solidariedade pertence ao verdadeiro ser do Natal e o resgata de uma interpretação meramente comercial e consumista.
No cristianismo, o Natal é a festa religiosa do nascimento de Jesus Cristo. Nós cremos que Jesus é o filho de Deus, feito homem no seio da Virgem Maria por obra do Espírito Santo. Nesse acontecimento salvífico central da história agem, portanto, as três pessoas divinas da Santíssima Trindade, a saber, o Pai, que envia seu Filho ao mundo, o Filho, que se faz homem no ventre de Maria para nossa salvação, e o Espírito Santo, por cuja obra se realiza essa encarnação do Filho de Deus.


A solidariedade pertence ao verdadeiro ser do Natal e o resgata de uma interpretação meramente comercial e consumista


Jesus nasce de Maria, em Belém da Judéia, na Palestina da época, há cerca de 2.000 anos. Esse Jesus é ao mesmo tempo Deus e homem. Nasce de uma mulher, mas por obra do Espírito Santo. Ser ao mesmo tempo Deus e homem é um mistério da fé cristã, mas tem sua lógica interna. Pois, para salvar-nos, o Filho de Deus se fez homem, tornando-se por si mesmo e em si mesmo ponte entre nós e Deus. Por essa razão, não podia nascer de mero conúbio entre duas criaturas humanas, homem e mulher, mas nasceria de uma mulher e por obra divina do Espírito Santo.
"Deus tanto amou o mundo que entregou seu Filho único, para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele" (Jo, 3, 16-17). Essa mensagem do Evangelho mostra que se trata de uma obra cuja origem se deve ao amor.
Deus nos ama e por isso quer nos salvar, não hesitando em entregar-nos seu único Filho eterno. Esse Filho vem porque nos ama e dará sua vida por nós na cruz. Porém ressuscitará dos mortos e vencerá a morte, de forma que em nossa existência humana a morte não tenha mais a última palavra, mas a vida a tenha. No fim dos tempos, a morte e todo o mal serão banidos pela força da ressurreição de Jesus.
Se Deus assim nos amou, ama e sempre amará, também nós, se quisermos ser salvos por Ele, devemos amar-nos uns aos outros, a ponto de não hesitarmos em dar a vida uns pelos outros.
Dessa história de amor, em que Deus nos amou primeiro, nascem a proposta e o exemplo de Cristo, a fim de que exerçamos a solidariedade para com todos, especialmente para com os pobres e sofridos. Ele mesmo nasce pobre entre os pobres, para desde logo chamar nossa atenção para os pobres. Em sua vida terrena, sempre se colocou em defesa dos pobres e dos injustiçados. Deixou claro que a desigualdade social, a violência, a injustiça social, a exclusão socioeconômica são pecados e, portanto, não vêm de Deus. Pregou uma sociedade em que todos sejam irmãos e na qual se organize a vida em comum na base da fraternidade, da caridade, da solidariedade e da igual dignidade humana de todos.
Jesus ensina: "Eu vos dou um novo mandamento -que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisso reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros" (Jo, 13, 34-35). "Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem" (Mt, 5, 44). "Àquele que te fere na face direita, oferece-lhe também a esquerda" (Mt, 5, 39). "Se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará" (Mt, 6,14).
A primeira comunidade cristã de Jerusalém pôs em prática esse ensinamento, conforme o livro dos "Atos dos Apóstolos": "A multidão dos que haviam crido [em Jesus] eram um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum (...). Não havia necessitados entre eles. De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se então a cada um segundo sua necessidade" (At, 4, 32 e 34-35).
Vê-se, portanto, que o amor é a lei fundamental do cristianismo, porque Deus é amor e nos amou primeiro. Unir a solidariedade à festa do Natal torna-se assim inevitável, pois Jesus, ao nascer, vem trazer esse reino de amor. Aliás, ser feliz no Natal se tornará mais real se formos solidários, pois praticar a solidariedade traz felicidade a quem exerce e a quem é beneficiado.
Sendo hoje o desemprego um flagelo social, aqui em São Paulo e no mundo inteiro, oferece-se como grande campo de ação solidária. A luta contra o desemprego é tão importante porque "o trabalho é chave, provavelmente a chave essencial, de toda a questão social" (João Paulo 2º). O sofrimento e a humilhação de quem está desempregado clamam alto em nosso meio. Sem trabalho, faltam recursos para sustentar dignamente a si e a seus dependentes. A pobreza se instala e aos poucos transforma-se em miséria e fome.
A Arquidiocese de São Paulo, diante do problema do crescente desemprego, quis dar sua contribuição. Criou o Centro Arquidiocesano do Trabalhador (Ceat), que é um serviço de inclusão social dos que foram excluídos do emprego. Tem postos de atendimento, com toda uma infra-estrutura técnica e profissional e, para quem quiser, religiosa, de acolhimento, orientação e cadastramento dos desempregados, busca de vagas nas empresas, cursos de requalificação profissional e de empreendedorismo.
Queremos, assim, exercer a solidariedade, a caridade no seu amplo sentido, e fazer nossa parte em busca de soluções.

Dom Cláudio Hummes, 69, é cardeal-arcebispo metropolitano de São Paulo. Foi arcebispo de Fortaleza (CE) e bispo de Santo André (SP).


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