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São Paulo, quarta-feira, 26 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Juros e os três Fernandos

SAULO RAMOS

Dia 4 de outubro, fim de tarde. No dia seguinte seria promulgada a Constituição de 1988. Enfim, a democracia por escrito, com muitos erros, mas conseguimos! Eu era consultor-geral da República e, como brasileiro, estava feliz. O telefone tocou. O presidente Sarney me chamou. Reunião no gabinete, que estava lotado. Maílson da Nóbrega, o finado Roberto Cardoso Alves e muitas outras autoridades, inclusive as monetárias, entre as quais o presidente do Banco Central, que devia usar babador.
Assunto: o art. 192 da Constituição (sistema financeiro), que, segundo alguns, entraria em vigor "na data da publicação" e, segundo outros, dependia de lei complementar. A ameaça maior era o par. 3º, que fixava os juros reais em 12 % ao ano, coisa do Fernando Gasparian, que, num momento de padre Vieira e inspirado pelo constituinte Fernando Henrique Cardoso (Comissão de Sistematização, lembram-se?), teve a idéia de fixar os juros no texto constitucional, único na história da humanidade e do dinheiro. Mas não sabia o que era juro real, nem a diferença do juro fictício.
Muita discussão no gabinete: o sistema vai quebrar; como não cuidaram disso antes; o texto era um inciso do artigo e, de repente, virou parágrafo, vai entrar em vigência, houve sabotagem.
Resumindo: sobrou para mim. Sugeri elaborar um parecer jurídico que, aprovado pelo presidente, vincularia o Banco Central e este baixaria ato obrigando o mercado a esperar a lei complementar prevista naquele artigo. As pessoas ficaram aliviadas e se foram. Lembrei-me de que, por ser feriado o dia da promulgação da cidadã, havia dispensado meu pessoal, que trabalhara exaustivamente durante os meses e meses da Constituinte. Mereciam um fim de semana emendado, antes das emendas que a Constituição nasceu pedindo. Tudo bem, mas eu estava sozinho, sem nem sequer um assistente para pesquisar alguns dados na biblioteca da Consultoria, mal iluminada -e por isso não era mal-assombrada.
Peguei uns livros. Ia trabalhar em casa. Então me lembrei do lançamento do livro do Carlos Chagas. Gostava muito dele e fui lá. Pronto: passava da meia-noite quando comecei a trabalhar. O parecer ficou pronto ao amanhecer. E o "Diário Oficial" rodou, no dia 6, edição especial com a nova Constituição e uma normal, mais modesta, com o meu parecer dizendo que o art. 192 não entrava em vigor.


Verifiquei ser uma grande bobagem, além de fantástico erro técnico, a Constituição fixar juros no sistema capitalista


Lembro que estudei tudo sobre juros aqui e nos outros países. Passei até por dom Sebastião, o rei menino, que, em 1500, baixou uma ordem régia proibindo cobrar dinheiro sobre o dinheiro. Creio ter sido por isso que os mouros o mataram am Alcácer Quibir.
A imprensa atirou de todos os lados. Confundiu tudo e baralhou mais o debate. Diante de palavras como anatocismo, aumentaram as vendas de dicionários. Mas um aspecto curioso da discussão sobre o entrar ou não em vigor deu-se na semana seguinte, num restaurante de Brasília, onde fui almoçar e encontrei o então senador Fernando Henrique Cardoso. Ele me questionou:
"Você pensa que vai impedir a vigência da Constituição com um simples parecer jurídico?"
"Penso."
E o Supremo Tribunal pensou a mesma coisa. Quando atacaram meu simples parecer jurídico com uma Adin (ação direta de inconstitucionalidade), acabou a festa. Além de dizer que não entrava em vigor, o STF ainda avisou que a regulamentação legal teria de ser feita através de uma única lei complementar. Uma só. Assim, estava na Constituição, escrito pelos dois Fernandos, o Gasparian e o Henrique Cardoso.
Com suas ironias caprichosas, o destino fez um terceiro Fernando, o Collor, ser defenestrado do poder e o professor Fernando Henrique eleger-se presidente da República na vaga do xará. E, na sua política econômica, foi quem mais usou os juros como ferramenta monetarista. Criou o Copom, com viés para cima, viés para baixo (que palavra horrível esse tal de viés! É por demais oblíquo!). Já pensaram em convocar uma Constituinte para baixar ou levantar meio ponto dos juros, ou para declarar que o mês é de viés para cima ou para baixo?
Quando estudei o assunto, verifiquei ser uma grande bobagem, além de fantástico erro técnico, a Constituição fixar juros no sistema capitalista, ou tabelar o preço do chuchu, ou dizer que uma dúzia de abobrinhas tem que ter exatamente 12 pequenas abóboras -detalhes e miudezas que nossos constituintes adoravam.
Mas Fernando Henrique arrependeu-se e pediu ao senador José Serra para consertar o erro, que era de todos eles (inclusive do Lula, que votou a Constituição), por meio de emenda que manda para o direito infraconstitucional, mantendo o nível complementar das respectivas leis, todo o sistema financeiro. É a solução. Em direito penal isto é chamado de arrependimento eficaz.
Mas parece que a lição não foi bem digerida. O deputado Virgílio Guimarães, com o apoio, segundo intrigam, do governo Lula, apresentou emenda alterando a redação do art. 192 para o plural. Em vez de lei, pretende leis. E mantém tudo como está, isto é, com a taxa de juros no texto constitucional em 12 %, exatamente a mesma dúzia de abobrinhas.
O erro do então parlamentar Fernando Henrique era no singular. Agora o governo quer colocá-lo no plural. Por que o viés imitativo? Se for para imitar os enganos políticos do passado, seria melhor o PT começar pelo superveniente arrependimento em vez deste do viés de repeti-los no plural. Lamentável é que o deputado Virgílio nem sequer se chama Fernando para dizer que está imitando o xará.

José Saulo Pereira Ramos, 73, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


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