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São Paulo, quarta-feira, 26 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O silêncio da cultura

JORGE DA CUNHA LIMA

O brasileiro é oral -fala pelos cotovelos em qualquer circunstância. É corporal -ginga na vida, na passarela, no palco e no campo de futebol. É muito mais afetivo do que racional. Tem uma abertura inusitada para as diversidades étnicas.
Por essa razão, qualquer intelectual habituado a essas circunstâncias antropológicas deve ter se extasiado diante de Isabelle Huppert, no palco do Teatro Anchieta. Uma narrativa psicanalítica não impacta mais ninguém, um século depois que Freud descobriu essas coisas. Já uma narrativa estética impacta o espectador até o fim dos tempos, sobretudo quando reduz o discurso à simples poesia. E isso aconteceu.
A representação de um espírito atormentado até o triunfo final da morte tem sido objeto de centenas de peças de teatro, desde tempos imemoriais.
O que "4.48 Psichose", de Sarah Kane, dirigida com o fio de uma navalha fina por Claude Régy, quis transmitir é bem claro: a única mediação é o corpo. O corpo humano. Não há tragédia entre as flores, mesmo as que enfeitam a morte. A ecologia será sempre um reflexo muito pálido da grandeza da humanidade.
Não sou crítico de teatro nem intento investir-me nessa condição, tão notavelmente assumida pelo saudoso Décio Almeida Prado e pelo Sábato Magaldi.
Apenas, isso me faz pensar na cultura, política a que me dedico de nascença. Cultura no Brasil, no contexto desse desafio permanente que é consolidar a democracia, promover o desenvolvimento e a justiça social, hoje sob o jugo do imperialismo político americano e sob o jugo mais cruel de mercado, induzido pelos "yuppies" de Wall Street e consagrado pelos tolos, como um fundamento.
Todos sabemos que existe um inexorável mercado de trocas, desde que Eva ofereceu a primeira maçã a Adão e Fausto colocou na bandeja sua alma, para satisfazer, com a barganha, seu íntimo desejo. Não é desse mercado genial que falo, que nos conduz aos píncaros da glória ou à mais sublime degradação. Falo do mercado imposto pelos interesses do poder, que degrada tanto a arte do bem comum quanto a fruição individual e social dos valores criativos.


Todos sabemos que existe um inexorável mercado de trocas, desde que Eva ofereceu a primeira maçã a Adão


No Fórum de Secretários da Cultura, quando o presidi em 84, obtivemos a promessa de Tancredo de que o Orçamento nacional da Cultura estaria num patamar mínimo de 1% daquele instrumento. A promessa, depois de sua morte, despencou a níveis tão insignificantes que é melhor mesmo deixar ao ministério seu papel emblemático e passar os tostões que restem à Casa Civil ou, se necessário, ao Ministério da Fazenda.
O do Gil, felizmente, é o Ministério da Re-Fazenda. Gilberto Gil já é em si mesmo um emblema, o que barateia a conta. Está trabalhando duro. Com os pés na terra e a cabeça onde sempre a costuma pôr. É verdade que herdou um ministério do qual Collor subtraiu o espírito e as instituições, deixando-lhe apenas a ossatura burocrática. E todos nós sabemos que essa é a parte do corpo que menos interessa a uma instituição cultural.
Em São Paulo, Claudia Costin assumiu para dar uma estrutura jurídica, institucional e financeira a inúmeros projetos e instituições artísticos e culturais criados pelo governo, colocando-os em pé e à disposição de uma sociedade tão necessitada de arte. Também está trabalhando duro. Precisa do apoio do Estado, da sociedade e de todos nós.
Abstraídas essas referências ao real nacional, é verdade que em toda parte, diante da enorme crise ética e mental que o mundo atravessa, os intelectuais estão calados demais, os artistas taciturnos e os acadêmicos anestesiados com as próprias teses.
Há, contudo, uma luz no fim do túnel. Uma luz que se renova em todos os palcos do mundo, como essa representação de Isabelle Huppert, emoção que corrige a razão. E mesmo quando o enredo nos leva à morte, a luz da arte permanece viva. E indispensável.

Jorge da Cunha Lima, 71, jornalista e escritor, é diretor-presidente da Fundação Padre Anchieta e presidente Abepec (Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais).


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