São Paulo, segunda-feira, 26 de março de 2007

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VINICIUS MOTA

A identidade que importa

NÃO DEIXA de ser irônico que a Igreja Católica, pivô do mais extraordinário movimento de expansão religiosa da história, agora se volte para a Europa. Do pó ao pó, disparariam aqueles incréus que perdem a vida eterna, mas não a piada. Não é o caso, evidentemente.
Os cardeais que elegeram Joseph Ratzinger não estão surpresos com a opção inicial do novo papado. Antes de assumir o trono de Pedro, o alemão jamais escondeu seus temores de que a fé católica e o cristianismo estivessem ameaçados no seu berço.
A homenagem a são Bento, reformador da ascese monástica católica e padroeiro da Europa, foi um tiro na mosca. A visita à Turquia, no ano passado, prestou as homenagens devidas à agenda inter-religiosa de João Paulo 2º e da própria igreja. Mas Ratzinger já voltou de Istambul.
Nas comemorações dos 50 anos do Tratado de Roma, início da União Européia, o bispo de Roma soltou o verbo. Reclamou da falta de um tributo às raízes cristãs nas declarações oficiais relativas ao aniversário do bloco, bem como no tratado constitucional da UE.
Fez mais. Associou a baixa fertilidade das mulheres no continente -não se referia, obviamente, às imigrantes- ao risco de diluição da identidade européia. Perfilou-se nesse item ao lado de figuras sinistras do nacionalismo xenófobo, como Jean-Marie le Pen.
Coube, nova ironia, à democrata-cristã Angela Merkel, presidente do Conselho Europeu, lembrar o papa de que na Europa "há uma clara separação entre o círculo político e o religioso". Merkel, atenta ao passado da Alemanha -onde, da última vez em que o Estado decidiu imiscuir-se em religião, exterminou 6 milhões de judeus- referiu-se às raízes "judaico-cristãs" do continente.
O "neomedievalismo", cuja emergência no debate intelectual foi encorajada pela ascensão de Ratzinger, encontra seus limites. A democracia moderna expulsou a religião da esfera pública e assegurou o exercício livre de todos os credos em caráter privado. A igreja, perdedora no processo, jamais encarou a derrota como definitiva.
Mas a revolução civilizatória do Ocidente iniciada no século 18 dá mostras de solidez sempre que é confrontada. Se agentes religiosos conseguem solapar as bases de políticas públicas como o controle da natalidade, não têm nenhum acesso aos pilares do edifício.
Na Europa cristã, avançam a cada dia instituições baseadas na tolerância, no bem-estar e na razão, como a união homossexual. Basicamente porque as empresas européias precisam competir, levas de imigrantes muçulmanos são recrutadas a cada dia.
Esses estrangeiros vão reforçar a identidade européia que importa, a democrática.


VINICIUS MOTA é editor de Opinião.


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