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TENDÊNCIAS/DEBATES
Vicissitudes da democracia
MARIO CESAR FLORES
A democracia representativa
com sufrágio universal não vem
tendo vida tranqüila em países onde as
condições socioeconômicas e culturais
diferem daquelas do mundo anglo-saxão, que a desenvolveu do século 17 ao
19. Em muitos deles, pobres ou desarmoniosamente desenvolvidos, com
bolsões de riqueza e pobreza, como é o
caso brasileiro, ela enfrenta dificuldades
resultantes, entre outras razões, da precariedade de alguns requisitos. Vejamos
quatro deles, sendo o segundo pouco
influente no Brasil.
Primeiro: instituições político-partidárias e procedimentos legais que propiciem a precedência da competência,
probidade e dedicação no resultado do
processo eleitoral. Segundo: ausência de
dissensões graves, religiosas, ideológicas, culturais e étnicas -requisito inibidor da democracia no Iraque, hoje. Terceiro: compatibilização entre prosperidade econômica, população e seu crescimento que permita respostas adequadas às demandas de toda ordem (a escassez sempre foi mais inspiração de
autoritarismo do que de democracia). E
quarto: um universo eleitoral razoavelmente educado (a alfabetização é necessária, mas não basta), com visão de vida
(aos 16 anos?) e segurança socioeconômica minimamente satisfatórias
-condições necessárias ao voto com
responsabilidade racional e cívica.
Em suma, o sucesso da democracia
depende de sistema político e metodologia eleitoral bem estruturados, elite talentosa e íntegra (a cor da democracia é
a das escolhas oferecidas ao povo, que
não pode escolher melhores, mesmo se
capaz disso), base de sustentação saudável (compatibilidade entre economia
e população, ausência de conflitos psicossociais e culturais graves) e preparo e
segurança socioeconômica do povo para a cidadania política. Sem isso, corre-se o risco de a democracia abrir espaço
para formulações voluntaristas e redentoristas. Vários autoritarismos do século 20 chegaram ao poder pelo ritual democrático, até em países europeus de
bom nível no tocante à educação (quarto requisito), no pressuposto de que eles
resolveriam problemas não resolvidos
pelas democracias frágeis que os precederam.
A precariedade do primeiro, terceiro e
quarto requisitos no Brasil afeta a vitalidade de nossa democracia, explica o sucesso eleitoral de oligarquias medíocres,
patrimonial-clientelistas, usufrutuárias
do poder e do populismo vulgar que
responde ilusoriamente aos efeitos, ignorando suas causas (é eleitoralmente
mais rentável doar dentaduras do que
praticar programa de saúde bucal preventiva...), assim traindo demagogicamente o interesse do povo; explica a ascensão política do televangelismo das
ilusões místicas e de personagens caricatas eleitas pelo protesto alienado, a
prevalência não-democrática da relação
político-massa sobre a relação partido-massa e dos marqueteiros sobre os programas.
O sucesso da democracia depende de sistema político eleitoral bem estruturado, elite talentosa e íntegra
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Tudo desaguando em instituições deficientes e no desencanto, com a massa
insegura e mais sequiosa de assistencialismo do que de democracia plena, vulnerável à sedução da democracia caudilhesca-carismática ou do salvacionismo
populista, entendida como capaz de
ampará-la (na eleição, só importa a do
messias executivo -Vargas em 1950;
Jânio em 1960; Collor em 1989; Lula em
2002).
As insuficiências dos requisitos básicos dificultam a correção democrática
dos vícios de nosso desenvolvimento e
de nossa cultura estatista inflada pelos
coletivismos de esquerda e direita do século 20, agravados pelas injunções da
interdependência global econômica,
cultural, ambiental e de segurança do
século 21.
Nessas circunstâncias, não é mesmo
seguro esperar que nossa democracia
idilicamente inspirada no modelo anglo-saxão resista incólume à dinâmica
política. No nosso clima psicopolítico
atual, é implausível um problema institucional grave. Contudo, se os requisitos e o equacionamento de nossos problemas seguirem precários, não é descartável a hipótese de mistificação da essência da virtude democrática, típica
dos supracitados caudilhismo carismático ou salvacionismo populista, camuflada na manutenção virtual do ritual
eleitoral, apoiada em "pressões sociais
democráticas" à margem do direito e a
serviço de uma "pirueta mudancista"
(?), com o Estado controlado ao estilo
do PRI mexicano.
Mario Cesar Flores, 73, é almirante-de-esquadra reformado. Foi secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (governo
Itamar Franco) e ministro da Marinha (governo
Collor).
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