São Paulo, segunda-feira, 26 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Vicissitudes da democracia

MARIO CESAR FLORES

A democracia representativa com sufrágio universal não vem tendo vida tranqüila em países onde as condições socioeconômicas e culturais diferem daquelas do mundo anglo-saxão, que a desenvolveu do século 17 ao 19. Em muitos deles, pobres ou desarmoniosamente desenvolvidos, com bolsões de riqueza e pobreza, como é o caso brasileiro, ela enfrenta dificuldades resultantes, entre outras razões, da precariedade de alguns requisitos. Vejamos quatro deles, sendo o segundo pouco influente no Brasil.
Primeiro: instituições político-partidárias e procedimentos legais que propiciem a precedência da competência, probidade e dedicação no resultado do processo eleitoral. Segundo: ausência de dissensões graves, religiosas, ideológicas, culturais e étnicas -requisito inibidor da democracia no Iraque, hoje. Terceiro: compatibilização entre prosperidade econômica, população e seu crescimento que permita respostas adequadas às demandas de toda ordem (a escassez sempre foi mais inspiração de autoritarismo do que de democracia). E quarto: um universo eleitoral razoavelmente educado (a alfabetização é necessária, mas não basta), com visão de vida (aos 16 anos?) e segurança socioeconômica minimamente satisfatórias -condições necessárias ao voto com responsabilidade racional e cívica.
Em suma, o sucesso da democracia depende de sistema político e metodologia eleitoral bem estruturados, elite talentosa e íntegra (a cor da democracia é a das escolhas oferecidas ao povo, que não pode escolher melhores, mesmo se capaz disso), base de sustentação saudável (compatibilidade entre economia e população, ausência de conflitos psicossociais e culturais graves) e preparo e segurança socioeconômica do povo para a cidadania política. Sem isso, corre-se o risco de a democracia abrir espaço para formulações voluntaristas e redentoristas. Vários autoritarismos do século 20 chegaram ao poder pelo ritual democrático, até em países europeus de bom nível no tocante à educação (quarto requisito), no pressuposto de que eles resolveriam problemas não resolvidos pelas democracias frágeis que os precederam.
A precariedade do primeiro, terceiro e quarto requisitos no Brasil afeta a vitalidade de nossa democracia, explica o sucesso eleitoral de oligarquias medíocres, patrimonial-clientelistas, usufrutuárias do poder e do populismo vulgar que responde ilusoriamente aos efeitos, ignorando suas causas (é eleitoralmente mais rentável doar dentaduras do que praticar programa de saúde bucal preventiva...), assim traindo demagogicamente o interesse do povo; explica a ascensão política do televangelismo das ilusões místicas e de personagens caricatas eleitas pelo protesto alienado, a prevalência não-democrática da relação político-massa sobre a relação partido-massa e dos marqueteiros sobre os programas.


O sucesso da democracia depende de sistema político eleitoral bem estruturado, elite talentosa e íntegra
Tudo desaguando em instituições deficientes e no desencanto, com a massa insegura e mais sequiosa de assistencialismo do que de democracia plena, vulnerável à sedução da democracia caudilhesca-carismática ou do salvacionismo populista, entendida como capaz de ampará-la (na eleição, só importa a do messias executivo -Vargas em 1950; Jânio em 1960; Collor em 1989; Lula em 2002).
As insuficiências dos requisitos básicos dificultam a correção democrática dos vícios de nosso desenvolvimento e de nossa cultura estatista inflada pelos coletivismos de esquerda e direita do século 20, agravados pelas injunções da interdependência global econômica, cultural, ambiental e de segurança do século 21.
Nessas circunstâncias, não é mesmo seguro esperar que nossa democracia idilicamente inspirada no modelo anglo-saxão resista incólume à dinâmica política. No nosso clima psicopolítico atual, é implausível um problema institucional grave. Contudo, se os requisitos e o equacionamento de nossos problemas seguirem precários, não é descartável a hipótese de mistificação da essência da virtude democrática, típica dos supracitados caudilhismo carismático ou salvacionismo populista, camuflada na manutenção virtual do ritual eleitoral, apoiada em "pressões sociais democráticas" à margem do direito e a serviço de uma "pirueta mudancista" (?), com o Estado controlado ao estilo do PRI mexicano.

Mario Cesar Flores, 73, é almirante-de-esquadra reformado. Foi secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (governo Itamar Franco) e ministro da Marinha (governo Collor).



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Francesco Scavolini: Dolly e os embriões humanos

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.