São Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Voto secreto, opinião pública e democracia

FÁBIO WANDERLEY REIS

As absolvições , em vários casos contra as recomendações do próprio Conselho de Ética, de parlamentares envolvidos nas denúncias de corrupção têm ensejado, não surpreendentemente, manifestações indignadas. Como conseqüência, surge com insistência a proposta de acabar com o voto secreto no Congresso, de maneira a tornar as decisões dos parlamentares mais sensíveis à "opinião pública". Há, contudo, equívocos e perigos importantes na tendência, que assim se manifesta de novo, a tomar como sacrossanta a opinião pública, ou a "voz das ruas" de que muito se falou anos atrás.


Não há razão para defender que o parlamentar se submeta, sem mais, às pressões da opinião pública


Naturalmente, não cabe admitir o cerceamento ou a repressão, em que ditaduras de tipos diversos sempre se empenham, da livre manifestação e circulação das idéias e opiniões. A estrepitosa derrocada dos regimes de socialismo autoritário no momento em que se difundiu a percepção de que o apoio com que contavam era na verdade reduzido deixa perceber a lógica subjacente à tensão entre ditadura política e opinião pública, mostrando o sentido em que a "voz das ruas" é indispensável à democracia.
Mas há um outro lado. Ele se liga com a idéia simples de que, afinal, o voto secreto é uma conquista democrática. Quando se trata do cidadão-eleitor, ninguém questiona que ele deva estar protegido de pressões e possa manifestar sua preferência pessoal autêntica, seja qual for a "opinião pública". Ora, pretender algo diferente para o caso do parlamentar no exercício de sua atividade significa entender a relação parlamentar-eleitor como envolvendo o chamado "mandato imperativo", em que o parlamentar simplesmente faria o que os eleitores quisessem a cada momento. Esse entendimento não só é inviável, supondo a operação ágil e eficaz de mecanismos de democracia direta quando o que temos é, com boas razões, a democracia representativa e constitucional; é também normativamente indesejável.
Assim, não há razão para considerar sempre legítimas as pressões da opinião pública, ou para defender que o parlamentar se submeta, sem mais, a elas. Pois, do ponto de vista do ideal democrático, muitas vezes elas não redundam senão em desvios patológicos, ilustrados na "psicologia de multidões" e no efeito de manada, ou na atmosfera "assembleísta" e na tendência ao conformismo e à supressão da divergência. Sem falar da manifestação supostamente mais amena da mesma patologia sob a forma da idéia do "politicamente correto", levando a que, como têm mostrado as pesquisas, muitos procurem ocultar sua "incorreta" opinião verdadeira eventualmente mesmo em situações nas quais a opinião tida como consensual ou dominante é de fato minoritária, justamente o engano de que tratam de valer-se as ditaduras. É sem dúvida desejável que se tenha a convergência básica de disposições e opiniões em torno dos valores democráticos, ou a criação, propriamente, de uma cultura democrática. Mas o risco de que esse desiderato se exceda na direção da pressão indevida ao conformismo, ou ocasionalmente na defesa da "fé" compartilhada, não pode ser ignorado.
Além disso, as pressões da opinião pública não são as únicas a ameaçar o voto aberto. Deixando de lado interesses poderosos e talvez escusos, ou os riscos mais sérios a que o parlamentar se pode expor em circunstâncias especiais, há também, afinal, as pressões dos seus próprios pares. Lembremos que a atenção para tais pressões esteve presente, em defesa do voto secreto, em versões anteriores do mesmo debate sobre cassação de parlamentares.
A indagação que resulta é clara. Queremos que a decisão do parlamentar sobre assuntos variados seja apenas uma espécie de resultante de pressões diversas que se façam sentir sobre ele? Ou o que cabe esperar é antes que ele decida ponderando judiciosamente as razões envolvidas e, eventualmente, o interesse maior da coletividade? Claro, os parlamentares sem caráter que com freqüência elegemos não corresponderão nunca a essa imagem benigna. Mas a aposta iludida nas virtudes da opinião pública não é, por si mesma, solução para tais casos. E acabaria por levar-nos, quem sabe, a pretender que o Executivo, por seu turno, administrasse o país com base em pesquisas de opinião.
Finalmente, as decisões se referem, no debate atual, ao julgamento e à punição de colegas. É evidente que as pressões corporativas serão mais intensas nesse caso. Se isso, em si, é ruim, torna-se pior ao constranger ainda mais o parlamentar a aderir sem restrições ao clamor punitivo, se quiser escapar à pecha de fazedor de "pizza". O que seria necessário é retirar tais decisões das mãos dos próprios parlamentares e encaminhá-las à Justiça. Em princípio, essa recomendação não é afetada pelas reservas há pouco manifestadas pelo ministro Joaquim Barbosa quanto à regra do foro privilegiado e as dificuldades do Supremo Tribunal Federal.

Fábio Wanderley Reis, 68, cientista político, é professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e autor, entre outros, de "Mercado e Utopia" (Edusp).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Antonio Melo: Marketing político: a piada do sofá

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.