São Paulo, quarta-feira, 26 de maio de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O tabu em torno da razão

MAURÍCIO TUFFANI


O pensador alemão Martin Heidegger problematiza as próprias noções de verdade e de razão, ou seja, ele as recusa como absolutas


Em seu artigo "Irracionalismo" (Ilustrada, 23/5), o colunista Antonio Cícero contestou os que acusam Descartes de ser autor de um pensamento conservador e repressivo.
Mas o fez atribuindo indevidamente a Martin Heidegger um "feroz anticartesianismo" e também a "desqualificação" da tradição filosófica e da razão. Com o devido respeito ao colunista, suas imputações ao pensador alemão do século 20 são simplificações falseadoras, assim como as próprias acusações ao filósofo francês do século 17.
Descartes é uma das melhores provas da fragilidade da famosa 11ª das "Teses sobre Feuerbach", de Marx: "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe transformá-lo". É inegável o papel revolucionário do cartesianismo na consolidação do ideário que dessacralizou o mundo e possibilitou submetê-lo aos rumos da burguesia em ascensão.
Heidegger não deixou de reconhecer o valor do pensamento moderno. Não faria sentido o rótulo "anticartesianismo", mesmo sem o adjetivo "feroz". Leitura cuidadosa de suas obras desautoriza a mostrá-las com uso do prefixo "anti".
Aliás, como disse ele em "Sobre o Humanismo", de 1947, "no âmbito do pensamento essencial, toda oposição é supérflua".
Em relação especificamente a Descartes, a obra principal de Heidegger, "Ser e Tempo" (parágrafo 24), ressalta não ser contestação à validade da concepção de certeza do pensador francês. Trata-se, isso sim, de mostrar a noção cartesiana não como essência da certeza, mas como derivação dessa essência.
Em outras palavras, Heidegger problematiza as próprias noções de verdade e de razão. Ou seja, ele as recusa como absolutas. Mas isso -que o colunista não aceita- não é desqualificar a razão nem a ciência, a técnica e a modernidade.
"Seria insensato investir às cegas contra o mundo técnico. Seria ter vistas curtas querer condenar o mundo técnico como uma obra do diabo", disse o pensador alemão em 1949, numa palestra para uma plateia não especializada, publicada com o título "Serenidade".
Sua objeção é outra: "Contudo, sem nos darmos conta, estamos de tal modo apegados aos objetos técnicos que nos tornamos seus escravos". Há muitas críticas contundentes a Heidegger.
Aqui mesmo, no Brasil, um de seus ex-alunos, o gaúcho Ernildo Stein, destacou que seu pensamento se torna vulnerável quando é preciso fazer juízos históricos sobre o aqui e agora.
E acrescentou: "A tentação de se apresentar como profeta, enquanto se é filósofo, além de absurda, é ridícula. E Heidegger nem sempre consegue fugir a essa tentação". Por sua vez, Carlos Alberto Ribeiro de Moura, da USP, apontou na leitura heideggeriana de outros filósofos, especialmente de Nietzsche, a "tortura dos textos para extorquir-lhes "confissões" ao gosto do intérprete". Por falar em Nietzsche, vale lembrar que, em "Além do Bem e do Mal" (parágrafo sexto), ele destacou que toda filosofia esconde intenções morais.
Sejam quais forem as de Antonio Cícero, elas parecem fazer do questionamento da razão um tabu.


MAURÍCIO TUFFANI é jornalista, editor do blog Laudas Críticas e assessor de comunicação e imprensa da Unesp.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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