São Paulo, sábado, 26 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O governo saiu enfraquecido da votação do salário mínimo?

SIM

Patrimônio dilapidado

ALBERTO GOLDMAN

Lula venceu a batalha eleitoral na Câmara ao confirmar o salário mínimo de R$ 260 e derrotar o projeto do Senado, que aprovou a nossa proposta de R$ 275, mas dilapidou irreversivelmente os elementos mais valiosos de seu patrimônio: o repúdio ao fisiologismo, manifestado na caracterização dos "300 picaretas" da Câmara dos Deputados, e a aguda sensibilidade com a condição de vida dos mais pobres, expressa no compromisso de dobrar, em quatro anos, o poder aquisitivo do salário mínimo.
Não é fácil entender por que o presidente se manteve com tanta rigidez em sua posição original de apenas repor a inflação e acrescentar 1,2% de aumento real, repetindo o que havia feito no ano passado. Do ponto de vista dos recursos disponíveis, o crescimento da arrecadação de janeiro a maio e sua projeção para o ano -5,5%, em valores reais- apontam para um excesso de arrecadação de, pelo menos, R$ 6 bilhões, mais do que o suficiente para cobrir os R$ 2,1 bilhões necessários à concessão de R$ 15 no salário mínimo.
Fazendo um comparativo com o governo anterior, no primeiro mandato de FHC o reajuste real, descontada a inflação, foi de cerca de 20%, o mesmo acontecendo no segundo mandato (vide Folha do último dia 24). Comparando com o valor da cesta básica de São Paulo, medido pelo Dieese, enquanto em 1994 o salário mínimo não comprava uma cesta básica, em 1995 comprava 1,08 e, em 2002, comprava mais de uma cesta e meia (1,53). Agora, após dois anos, o poder de compra do mínimo está estagnado. Com o valor de R$ 260, apenas se mantém o índice de 1,53.
Diferentemente da antiga oposição, que nunca apresentou as fontes de custeio, o que propusemos -factível, justo e coerente com a nossa responsabilidade política e com o nosso passado- foi dar continuidade, e na mesma velocidade, à recuperação do valor do mínimo havida durante o governo anterior. Ainda que modesta, era -e é- a possível.
O governo Lula sai do episódio enfraquecido. Perde sua autoridade moral e sua autoridade política. Já está pagando caro por erros do início do governo, quando inchou e alimentou os partidos fisiológicos, dando-lhes um desproporcional poder de barganha. Torna-se, cada dia mais, refém deles.
Para vencer, Lula usou não só o instrumento da liberação de emendas parlamentares já inscritas no Orçamento, que deveria ser automático (sem toma-lá-dá-cá), como também, mais grave, entregou cargos importantes a indicados, sem qualificação adequada, pelos principais líderes de sua base política.
O que se poderá esperar da administração federal e da gestão dos recursos públicos?
Lula atira pela janela o discurso do salário mínimo como importante fator de distribuição de renda, sabendo que o mesmo diz respeito, diretamente, à qualidade de vida de mais de 40 milhões de pessoas. Seu novo discurso (e justificativa) é que outros programas, puramente assistenciais, são mais eficazes no combate à pobreza. Ignora que a Previdência Social é responsável pelo gasto de 80% do total dos programas de distribuição de renda.
No discurso de encaminhamento da votação do mínimo na Câmara, o líder do PT, deputado Arlindo Chinaglia, afirmou que a oposição não estava propondo um salário mínimo digno, estava apenas querendo derrotar o governo. Se fizéssemos como o PT, no passado, propondo US$ 100 ou números ainda superiores, estaríamos sendo dignos e responsáveis? E se o mínimo de R$ 275 não é digno, o de R$ 260 é?
Em nenhum momento da discussão o governo procurou contestar os números apresentados quanto às possibilidades da arrecadação. Limitou-se a encobrir a realidade, abusando do reconhecimento de todos quanto à sensibilidade do presidente aos problemas sociais, com a frase de efeito: "Se o Lula pudesse dar um real a mais, não daria?".
Resta saber o que o governo fará com o excesso de arrecadação. Cremos que, repetindo o ano passado, o governo pretende realizar um superávit primário, sem formalizá-lo, superior aos 4,25% estabelecido no Orçamento.
O que mais nos preocupa é a questão da governabilidade. O presidente Lula tem a seu favor o fato de haver impedido qualquer aventura dos seus companheiros. Porém vem perdendo o respaldo e mesmo a confiança e o respeito de sua gente. Vive o conflito interno de seu partido, entre o ser e o não ser, e, no governo, a luta interna pelo poder. Apóia-se no que há de pior na política nacional, a direita conservadora, conforme confirma o ministro José Dirceu, e não consegue impedir a transformação do aparelho de Estado em instrumento de busca de recursos para o acesso ou a manutenção do poder.
A vitória na Câmara não contribui para superar todos esses problemas. Pelo contrário, agrava-os.


Alberto Goldman, 66, é deputado federal pelo PSDB-SP. Foi ministro dos Transportes (governo Itamar Franco) e secretário da Administração do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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