São Paulo, sexta-feira, 26 de junho de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

República e reeleição

ALMINO AFFONSO


Gostaria de ver Lula fiel a si mesmo, respaldando o princípio vedatório, tão importante à consolidação democrática


VAI GANHANDO espaço o debate sobre o direito à reeleição de presidente da República, de governadores e prefeitos municipais, já agora extensivo ao terceiro mandato, que a emenda constitucional de autoria do deputado Jackson Barreto (PMDB-SE) busca instituir.
Talvez não se vejam tropeços jurídicos a limitar a referida proposição. Contudo, por suas implicações que vão além do imediato, considero oportuno que se evoquem os princípios republicanos, tais como foram definidos na Constituição de 1891 e assim se projetaram nas Constituições que a sucederam, configurando a nossa própria doutrina política. A vedação à reeleição, desde logo, é um deles, pois se casa com a ideia da alternância no poder, que encarna a renovação dos mandatários.
Excluído esse limite, sobretudo se a permissividade se converter em norma cada vez mais ampla, é inevitável que, na prática, se instaure governo inamovível. Vale dizer: o oposto da visão republicana. Com efeito, a reiterada eleição (como se o mandatário fosse insubstituível) tende a criar castas que se esclerosam, refletindo-se na inércia administrativa e, não raro, nas engrenagens da corrupção. A alternância, ao invés, é inovadora: traz consigo a iniciativa da crítica, questionando o que está enraizado por erros e omissões. Portanto, por natureza, é inerente a ela o impulso transformador.
Não por acaso, Rui Barbosa sustentava a tese de limitação temporária do chefe da nação. Sobre esse preceito, escrevia ele, com a lucidez de sempre, "tem resultado, não somente ser restrito a um curto prazo o tempo do exercício da primeira magistratura, senão vedar-se a reeleição do que ocupe, receando-se que a faculdade contrária importe em deixar ao chefe de Estado aberta a porta à perpetuidade no governo da soberania".
Não levanto hipóteses imediatas. Mas o que impede, rompido o princípio republicano da vedação, possam criar-se as trilhas do continuísmo em nome da eficiência governativa? Por acaso Borges de Medeiros, escudado na Constituição do Rio Grande do Sul de 14 de julho de 1891, não logrou ser eleito para a chefia do Estado por cinco vezes? De igual modo, Porfirio Díaz não permaneceu como presidente do México, legalmente eleito, durante 35 anos?
Ao longo de toda a história da República, a cláusula vedatória foi sempre uma constante. Nem as Constituições autocráticas de 1937 e 1967 ousaram removê-la. Não precisavam fazê-lo (dir-se-á) porque tudo estava a seus alcances, mas a verdade é que, formalmente, a deixaram intacta. Tão consolidada tradição não está a merecer que assim se mantenha, inclusive removendo a emenda que, faz alguns anos, desmereceu as conquistas da Constituição de 1988?
A leitura apressada do projeto do deputado federal Jackson Barreto pode levar muitos a esquecer que também os governadores e os prefeitos municipais, já no gozo do segundo mandato, poderão usufruir do privilégio de disputar o terceiro mandato consecutivo. Podem imaginar o que há de ser, pelo país afora, os impérios que serão constituídos, sempre em nome da alegação da continuidade administrativa exemplar?
Poderão argumentar: e se assim for, não ganhará o povo com a eficiência de administrações de reconhecida relevância? Fantasia à parte, será bom lembrar que os governantes ineptos ou corruptos, tendo montado a sua corte, também poderão eleger-se pela terceira vez consecutiva.
Como essa hipótese não é absurda, mais uma razão temos para que os mandatos sejam de curto prazo (cinco anos no máximo) e para que a cláusula vedatória prevaleça, como sempre foi de nossa tradição política.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em reiteradas declarações à imprensa, tem-se oposto, de maneira categórica, à proposição que lhe permitiria disputar a reeleição presidencial pela segunda vez consecutiva. Tomara não tergiverse. Tenho por ele, desde seus tempos de líder sindicalista, respeito e admiração. Gostaria de vê-lo fiel a si mesmo, respaldando o princípio vedatório, tão importante à consolidação democrática.

ALMINO AFFONSO, 80, é advogado. Foi deputado federal pelo PSB-SP, ministro do Trabalho e da Previdência Social (governo João Goulart) e vice-governador do Estado de São Paulo (1983-1985).


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