|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Crise aérea: o desrespeito à nossa sociedade
MARILENA LAZZARINI e MARCOS PÓ
Nada se compara à situação dramática do setor aéreo, o caso mais extremado e escandaloso de ineficiência regulatória governamental
ESCRITA POR George Stigler em
1971, a teoria da regulação econômica preconizava que, "em
regra, a regulação é adquirida pela indústria, além de concebida e operada
fundamentalmente em seu benefício". O autor entendia que, sob certos
jogos de interesses políticos e econômicos, a regulação acabava sendo prejudicial à sociedade.
Essa visão passou por aperfeiçoamentos. Mesmo sob o modelo econômico dos anos 80 ("mais mercado,
menos governo"), a regulação governamental foi considerada crucial para
o funcionamento dos mercados, evitando produtos e serviços inseguros,
prevenindo a concorrência injusta e
ampliando a informação ao consumidor. Ficou claro também que seus resultados sociais são definidos, em
grande parte, pelos princípios sob os
quais se articulam os interesses políticos e econômicos e pela transparência do processo.
Todavia, autoridades dizendo que
segurança implicará aumento de preços, o que é absurdo, e alegando dificuldades para limitar vôos em Congonhas, a mina de ouro das empresas,
nos mostram que Stigler tinha razão.
O Idec comemora em julho 20 anos
de atuação independente de empresas e governos na defesa do consumidor. Nessa trajetória, atuou em centenas de embates com segmentos econômicos poderosos e agentes governamentais omissos, entre outras condições difíceis, obtendo resultados favoráveis aos consumidores.
Mas nada se compara à situação
dramática do setor aéreo, atualmente
o caso mais extremado e escandaloso
de ineficiência regulatória governamental, lamentavelmente levando à
perda de vidas humanas.
O problema mais grave na regulação da aviação civil é indubitavelmente a omissão das autoridades em relação à segurança da população. Em dezembro passado, o TCU fez documentos contundentes sobre a crise,
apontando a negligência (e até a imperícia) da gestão do setor.
Por essa razão, estamos propondo
um boicote ao aeroporto de Congonhas até que seja feita, por instituição
independente, uma avaliação sobre as
suas reais condições de operação, a
ser discutida publicamente.
Verifica-se mais omissão na aplicação do Código de Defesa do Consumidor, tornando rotineiros os atrasos, a
desinformação, as esperas e o desrespeito aos direitos mais básicos de assistência. Ademais, há tempos os passageiros enfrentam múltiplas escalas
e aumento na duração de vôos com a
"otimização" das rotas, o que sobrecarregou Congonhas. A resposta das
autoridades tem sido deplorável.
Esse contexto é agravado pela ineficiência das penalidades impostas às
empresas que desrespeitam os consumidores e as regras do mercado.
Quando ocorrem, são tardias e irrisórias, do que são só um exemplo os ridículos valores de multas impostas
pela Anac. Ao não punir adequadamente, o abuso se oficializa. Dizer que
isso decorre de tabelas ou procedimentos administrativos é sarcasmo.
Outro grande problema é a incompetência dos dirigentes para mudar
esse quadro. Problemas orçamentários e falta de quadros limitam os órgãos reguladores, mas não explicam a
situação em que nos encontramos.
Nomeações de dirigentes apadrinhados por políticos seriam um problema menor se houvesse capacidade
técnica e eles não buscassem defender interesses de grupos, como infelizmente parece ser o caso pelas reportagens veiculadas na imprensa.
Completando o cenário, temos a
opacidade, com regras decididas nos
bastidores, critérios duvidosos, ausência de consultas públicas e adequada prestação de contas sobre as
ações tomadas. Some-se a isso o contumaz "jogo de empurra".
Preocupado com a segurança aérea,
o Idec enviou carta em 8/6 para a
Anac, a Infraero, os ministérios da
Defesa e do Planejamento, a Casa Civil e o presidente Lula solicitando informações. A Anac e a Infraero informaram, como se não tivessem nada a
ver com o caos instalado, que a responsabilidade é do Comando da Aeronáutica. E o Ministério da Defesa,
responsável pelo comando, até agora
não enviou resposta.
Investimentos de longo prazo, benéficos à sociedade, só são feitos por
empresas que sabem que competirão
em mercados em que todos estão sujeitos a regras que impõem padrões
elevados de comportamento. Sem dúvida, o grau de respeito aos direitos
dos consumidores por empresas privadas e pelo governo é indicador do
avanço social e econômico de uma sociedade. O Idec continuará atuando
para que as políticas públicas e a regulação levem em conta a adequada e a
necessária proteção ao consumidor.
Se o Brasil deseja ser um país avançado, já passou da hora de cuidar disso.
MARILENA LAZZARINI, 59, engenheira agrônoma, é
coordenadora-executiva do Idec (Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor). MARCOS PÓ , 36, engenheiro eletricista, mestre em administração pública (FGV-SP), é coordenador-executivo adjunto do Idec.
www.idec.org.br
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Marcia Tiburi: Aborto, soberania e mudez das mulheres Índice
|