São Paulo, quinta-feira, 26 de julho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Crise aérea: o desrespeito à nossa sociedade

MARILENA LAZZARINI e MARCOS PÓ

Nada se compara à situação dramática do setor aéreo, o caso mais extremado e escandaloso de ineficiência regulatória governamental

ESCRITA POR George Stigler em 1971, a teoria da regulação econômica preconizava que, "em regra, a regulação é adquirida pela indústria, além de concebida e operada fundamentalmente em seu benefício". O autor entendia que, sob certos jogos de interesses políticos e econômicos, a regulação acabava sendo prejudicial à sociedade. Essa visão passou por aperfeiçoamentos. Mesmo sob o modelo econômico dos anos 80 ("mais mercado, menos governo"), a regulação governamental foi considerada crucial para o funcionamento dos mercados, evitando produtos e serviços inseguros, prevenindo a concorrência injusta e ampliando a informação ao consumidor. Ficou claro também que seus resultados sociais são definidos, em grande parte, pelos princípios sob os quais se articulam os interesses políticos e econômicos e pela transparência do processo. Todavia, autoridades dizendo que segurança implicará aumento de preços, o que é absurdo, e alegando dificuldades para limitar vôos em Congonhas, a mina de ouro das empresas, nos mostram que Stigler tinha razão.
O Idec comemora em julho 20 anos de atuação independente de empresas e governos na defesa do consumidor. Nessa trajetória, atuou em centenas de embates com segmentos econômicos poderosos e agentes governamentais omissos, entre outras condições difíceis, obtendo resultados favoráveis aos consumidores. Mas nada se compara à situação dramática do setor aéreo, atualmente o caso mais extremado e escandaloso de ineficiência regulatória governamental, lamentavelmente levando à perda de vidas humanas.
O problema mais grave na regulação da aviação civil é indubitavelmente a omissão das autoridades em relação à segurança da população. Em dezembro passado, o TCU fez documentos contundentes sobre a crise, apontando a negligência (e até a imperícia) da gestão do setor. Por essa razão, estamos propondo um boicote ao aeroporto de Congonhas até que seja feita, por instituição independente, uma avaliação sobre as suas reais condições de operação, a ser discutida publicamente.
Verifica-se mais omissão na aplicação do Código de Defesa do Consumidor, tornando rotineiros os atrasos, a desinformação, as esperas e o desrespeito aos direitos mais básicos de assistência. Ademais, há tempos os passageiros enfrentam múltiplas escalas e aumento na duração de vôos com a "otimização" das rotas, o que sobrecarregou Congonhas. A resposta das autoridades tem sido deplorável. Esse contexto é agravado pela ineficiência das penalidades impostas às empresas que desrespeitam os consumidores e as regras do mercado. Quando ocorrem, são tardias e irrisórias, do que são só um exemplo os ridículos valores de multas impostas pela Anac. Ao não punir adequadamente, o abuso se oficializa. Dizer que isso decorre de tabelas ou procedimentos administrativos é sarcasmo.
Outro grande problema é a incompetência dos dirigentes para mudar esse quadro. Problemas orçamentários e falta de quadros limitam os órgãos reguladores, mas não explicam a situação em que nos encontramos. Nomeações de dirigentes apadrinhados por políticos seriam um problema menor se houvesse capacidade técnica e eles não buscassem defender interesses de grupos, como infelizmente parece ser o caso pelas reportagens veiculadas na imprensa. Completando o cenário, temos a opacidade, com regras decididas nos bastidores, critérios duvidosos, ausência de consultas públicas e adequada prestação de contas sobre as ações tomadas. Some-se a isso o contumaz "jogo de empurra".
Preocupado com a segurança aérea, o Idec enviou carta em 8/6 para a Anac, a Infraero, os ministérios da Defesa e do Planejamento, a Casa Civil e o presidente Lula solicitando informações. A Anac e a Infraero informaram, como se não tivessem nada a ver com o caos instalado, que a responsabilidade é do Comando da Aeronáutica. E o Ministério da Defesa, responsável pelo comando, até agora não enviou resposta.
Investimentos de longo prazo, benéficos à sociedade, só são feitos por empresas que sabem que competirão em mercados em que todos estão sujeitos a regras que impõem padrões elevados de comportamento. Sem dúvida, o grau de respeito aos direitos dos consumidores por empresas privadas e pelo governo é indicador do avanço social e econômico de uma sociedade. O Idec continuará atuando para que as políticas públicas e a regulação levem em conta a adequada e a necessária proteção ao consumidor. Se o Brasil deseja ser um país avançado, já passou da hora de cuidar disso.


MARILENA LAZZARINI, 59, engenheira agrônoma, é coordenadora-executiva do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). MARCOS PÓ , 36, engenheiro eletricista, mestre em administração pública (FGV-SP), é coordenador-executivo adjunto do Idec.

www.idec.org.br

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Marcia Tiburi: Aborto, soberania e mudez das mulheres

Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.