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Aborto, soberania e mudez das mulheres
MARCIA TIBURI
Perder o exercício do poder sobre o corpo das mulheres é o que assusta homens de mentalidade arcaica hoje em dia
U
M DOS aspectos mais interessantes quando se discute o
aborto hoje é o fato de que os
principais participantes da discussão
são homens. Os mesmos que -é preciso dizer- nunca irão parir, jamais
serão mães, não abortarão. Eles falam, enquanto as mulheres fazem.
Não devemos com isso supor que os
homens não deveriam participar de
tais discussões, mas perguntar por
que a palavra deles se mostra prevalente nessa questão. Devemos perguntar por que eles parecem mais interessados que as imediatamente interessadas que continuam fazendo ou
não abortos, tendo ou não seus filhos.
A contradição entre o discurso dos
homens e a ação praticada pelas mulheres é o que precisa ser levado a sério. Ela pode ajudar a explicar por que
o aborto não foi legalizado no Brasil
nem o será em países nos quais as mulheres são, em sua maioria, pobres e
desprovidas de poder. Por que as mulheres esperam caladas por todas as
decisões políticas, inclusive por aquelas que as tocam diretamente?
A legalização do aborto não virá dos
donos do poder e dos discursos que
comandam e decidem sobre o corpo
das mulheres. Elas, em silêncio, agem
como se não fossem donas e senhoras
de seus corpos. E, de fato, não o são
enquanto continuam na velha economia da sedução, da prostituição, da
maternidade, da vida doméstica, do
voyeurismo do qual são a mercadoria.
Que as decisões sobre seus próprios
corpos não pertençam às mulheres é
uma contradição que poucas podem
avaliar. Não ter voz significa não pertencer à política. Na medida em que
não participam nem percebem o
quanto estão alienadas da conversa,
as mulheres perpetuam a injustiça
que as trouxe até aqui.
Em última instância, estão distantes da ética que envolve a decisão sobre seus direitos e sua própria vida.
Além disso, a questão do aborto sinaliza que a liberdade das mulheres
-prisioneiras ancestrais de uma estrutura social que tem sua lógica- está sempre vigiada. Que nossa sociedade seja patriarcal significa bem mais
do que dominação dos homens sobre
as mulheres. Que estas sejam vítimas,
e aqueles, algozes. Mas que o patriarcado depende da ausência de democracia na qual os direitos das mulheres venham à luz.
O que realmente assusta quando se
fala em aborto é o que virá com a fala
das mulheres e que, dia após dia, é
praticado em silêncio nas clínicas
deste país. É o fato e a prática cotidiana que se realiza de modo soberano,
ainda que clandestino.
A soberania daquele que emite uma
opinião fundamentada em seu próprio nome e por sua própria voz é análoga à soberania que uma mulher pode ter sobre seu corpo. Aquele que pode falar pode fazer porque cria, por
meio de sua fala, valores, relações e
consensos. Aquela que fala em seu
próprio nome manifesta a possibilidade universal de que muitas a sigam
ou simplesmente saiam da clandestinidade, única forma pela qual mulheres podem ser soberanas sobre seus
próprios corpos sem correr riscos na
ordem moral e legal. É essa soberania
das mulheres que assusta. Por isso,
ela permanece na clandestinidade.
A ausência histórica de autorização
para a fala e, assim, para o poder, é elemento fundador do lugar ocupado pelas mulheres na sociedade. A fala das
mulheres causa angústia e temor na
ordem. Que mulheres possam tomar
suas decisões e sejam amparadas pela
Justiça é algo que uma sociedade que
se construiu pela submissão das mulheres e pela superioridade dos homens não pode suportar sem uma
ampla renovação dos costumes.
Hoje, as mulheres que possuem algum poder proveniente do dinheiro
ou da liberdade sobre a própria vida
praticam o aborto soberanamente. As
que não têm poder nenhum -aquisitivo, intelectual ou outro poder que
garanta a autoconsciência quanto à
pertença de seus corpos- são vítimas
de uma sociedade que não prevê espaço para uma prática que deveria ser
medida a partir da soberania da mulher sobre seu corpo e sua vida.
Homens desde sempre souberam
disso e imperaram sobre seus próprios corpos e sobre todos os corpos
que lhes prestaram serviços -também os corpos de seus empregados,
de seus filhos e suas filhas.
Perder o exercício do poder sobre o
corpo das mulheres é o que assusta
homens de mentalidade arcaica hoje
em dia. Assusta as instituições autoritárias. Ter soberania sobre o próprio
corpo talvez também não interesse a
todas as mulheres, pois isso exige
uma responsabilidade para a qual talvez não estejam individualmente preparadas.
MARCIA TIBURI, 37, graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), é professora de filosofia da
Faap (Fundação Armando Álvares Penteado). É autora,
entre outras obras, de "O Corpo Torturado".
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