São Paulo, quinta-feira, 26 de agosto de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Até quando?

RIO DE JANEIRO - Reclamam dos jornais que só publicam atos ou fatos extraordinários. Quem sai de casa para o trabalho e volta, sem ser assaltado, assassinado, roubado ou seqüestrado, não merece notícia nem comentário.
Na semana passada, junto ao meu escritório, aqui no Rio, um senhor grisalho foi assaltado por dois rapazes. Reagiu como pode, mas pode pouco: um dos jovens deu-lhe um tiro na cabeça, morte fulminante. O corpo ficou na calçada durante horas. Nenhuma nota nos jornais ou nos noticiários das rádios e das TVs. Não foi um ato nem um fato que merecesse notícia. O corpo ensangüentado na calçada era tão natural como a própria calçada.
No mesmo dia, indo a São Paulo, tomei um táxi em Congonhas e reparei que o motorista estava trêmulo, sem condições de dirigir. Quis mudar de carro, mas ele me tranqüilizou, pediu um tempo, garantiu que logo estaria bem.
Durou pouco a crise do motorista. Levou-me para o hotel, mas me contou. Momentos antes, numa das ruas próximas ao aeroporto, ele escapara por pouco de um tiroteio que deixou dois mortos no asfalto. Sem que eu pedisse, desviou-se do itinerário habitual, passou novamente pela tal rua e me mostrou: os dois corpos lá estavam, cobertos por jornais. Desconfiei que ele queria provar que não mentira, que não inventara aquelas mortes.
Nenhuma notícia. É evidente que as delegacias da jurisdição anotaram os dois crimes, solicitaram a remoção (certamente tardia) para o Instituto Médico Legal. Tudo rotina.
Bem verdade que, nos dois casos, havia pessoas em volta dos corpos. Brevemente, nem isso. Olharão por olhar, mas sem escândalo ou pasmo. Logo seguirão caminho, que a vida é assim mesmo, uns morrem e ficam na calçada, outros vão para o trabalho e, se não tombarem em outra calçada, voltarão para casa.
Sim, mas até quando?


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