São Paulo, sábado, 26 de agosto de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES


O Brasil deveria adotar a pena de morte?

NÃO

Uma pena sem sentido

JOSÉ CARLOS DIAS

O TEMA , mais que recorrente, é permanente. Aparece quando a violência parece sufocar de forma insuportável. A evidência do sufoco está no fato de que o crime se organiza melhor do que o Estado e nós somos tomados por um medo asfixiante. O Estado é ineficaz, ineficiente, permeado pelo próprio crime. A pena de morte surge como panacéia a prometer um basta para a violência, a "justa vingança", como se houvesse vingança justa. A carga de ódio e de paixão presente no sentimento de revolta é incompatível com a racionalidade com que a lei deve se expressar e o Estado deve punir.
Não há ato de violência mais exacerbado do que o crime de morte praticado sob a forma de execução de pena, perpetrado pela consciência e participação de muitas vontades, premeditado e friamente engendrado, executado com sofisticação, numa seqüência de gestos da maior crueldade e de sadismo altamente criminógeno.
Evito a discussão ética e moral a respeito do poder da vontade humana sobre a vida de um semelhante. Quero preservar o direito e o dever de considerar que os criminosos, todos eles, devem ser punidos com o rigor proporcional à intensidade de sua intenção, à sua periculosidade.
Reflitamos sobre a eficácia da pena como instrumento garantidor da ordem e da paz. Se a pena tem o efeito de castigar, no sentido etimológico de tornar puro ("castum agere"), a pena de morte é inócua: matando não se obtém o efeito educativo -em vez de ser educado, foi morto.
Mas se o efeito educativo tem o caráter exemplar para terceiros, a verdade é que a prática demonstra que os crimes graves não deixam de ocorrer pelo agravamento da sanção penal. Quando se criou a figura do crime hediondo na nossa legislação, absolutamente não se sentiram desalentados os criminosos em continuar a praticar tais condutas. Bem ao contrário, malefícios causou tal modificação legislativa na execução da pena, tirando dos réus o estímulo da progressão.
Se sua eficácia objetiva é inibir o impulso criminoso, é indiscutível que o perigo é o desafio para a violência. O criminoso há de temer mais a reação violenta do que a longínqua perspectiva do corredor da morte. O delinqüente não o teme pois com a morte se confronta no cotidiano, enfrentando a polícia e as diversas facções do crime. Por certo não irá deixar de praticar um ato só pela conjectura de que será conduzido ao corredor da morte.
A eficácia da pena se amarra na necessidade de defesa social, guardando parâmetros e reservas éticas e morais. Não se aceita, ao menos por aqui, a amputação da mão de quem rouba. É para reservar nossos direitos que se definem condutas contrárias ao bem comum e de gravidade tal que exigem punição se outras formas forem ineficientes para restabelecer a ordem. E vai daí que a prisão é também das piores das soluções, ineficaz no sentido ressocializante, mas muitas vezes necessária para garantir a exclusão social temporária de um indivíduo.
Pensar na pena de morte é optar por opção retrógrada, rejeitada hoje pela esmagadora maioria dos países. Por exemplo, todos os Estados-membros da União Européia rejeitam a pena de morte, e tal decisão é condição indispensável para o ingresso na UE. De todos os países do mundo, cerca de 122 são abolicionistas da pena de morte. No chamado Primeiro Mundo, somente os EUA e o Japão persistem em adotar a pena capital. Em nosso país, existe a previsão legal da pena de morte para crime em tempo de guerra. Durante a ditadura, vigorou a pena de morte de 69 a 79. Houve uma condenação que veio a ser reformada. Isso não quer dizer que não tem havido no correr de nossa história muitas execuções sumárias.
A execução de pena de morte praticada contra o fazendeiro Manoel Mota Coqueiro, em 1855, pelo assassinato de uma família de colonos foi tida, durante muito tempo, como a última execução de pena de morte no Brasil. A matéria é tratada e desvendada a verdade por Luís Francisco Carvalho Filho em resenha histórica publicada na revista nš 33 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, "Mota Coqueiro - O Erro em torno do Erro". É desse belo opúsculo que reproduzo receita de um famoso advogado norte-americano, Clarence Darrow, para ajudar uma decisão sobre o que dizer e pensar a respeito da pena de morte: "É questão de saber como você se sente. Está tudo dentro de você. Se você gosta da idéia de alguém sendo morto, então você é a favor. Se você detesta a idéia de alguém sendo morto, então você é contra". Procurem-se horizontes para combater a violência, mas que não seja a violência do Estado contra um ser sem destino, com o risco de constituir um erro judiciário de irremediável solução, como tantos que já aconteceram, como registra a história.


JOSÉ CARLOS DIAS , 66, é advogado criminalista. Foi presidente da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, secretário da Justiça do Estado de São Paulo (governo Montoro) e ministro da Justiça (governo FHC).


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