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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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ANTÔNIO ERMÍRIO DE MORAES

Era só o que faltava...

Fazia muito tempo que ela não telefonava. Comecei a me preocupar. Afinal, ela já passou dos 75 e, pessoas dessa faixa etária, na qual me incluo..., deixemos para lá o que para todos é óbvio...
Em vista do "ensurdecedor silêncio", liguei para a amiga, perguntando logo sobre sua saúde, ao que ela respondeu: passei três semanas no hospital. Estou desesperada, estarrecida, enfurecida.
Assustei-me. Afinal, a Joaninha sempre teve uma saúde de ferro. Não era qualquer gripezinha que a derrubava. No nosso tempo de escola, era a mais forte das garotas, a única que tomava banho frio, que vinha e voltava a pé (caminhando 12 quilômetros), que ajudava a mãe na limpeza do casarão que abrigava seus nove irmãos, que ia na missa da tarde não só para rezar mas também para arrumar o altar e a bagunça que o padre João deixava na sacristia.
Formada professora, a Joaninha continuou elétrica. Nos seus 40 anos de magistério, sempre foi a primeira a chegar e a última sair da escola, levando para casa uma montanha de cadernos para corrigir. E, até o mês passado, estava lépida e faceira.
Por isso estranhei. Acabou dizendo que foi acompanhante da sua irmã, internada às pressas em um hospital público no vale do Paraíba devido a uma queda na banheira acompanhada de crise cardíaca.
E por que os protestos? Em primeiro lugar, devido à dificuldade que teve para visitar a irmã na enfermaria do SUS. Até aí, tudo bem, pois visitantes, muitas vezes, mais atrapalham do que ajudam, especialmente quando disparam a falar como aquelas matracas giratórias que nunca param.
Em segundo lugar, devido à péssima assistência dispensada à sua irmã. Ela, que é epiléptica, foi logo avisada de que o SUS não cobre as despesas com aquela doença nem os gastos com placas e parafusos (R$ 6.000) que seriam necessários para reparar o fêmur. A crise cardíaca exigiria uma angioplastia com colocação de "stent" (R$ 4.000) que também não seria coberta pelo SUS.
A Joaninha desesperou-se. Sem ter de onde tirar, teve de recorrer a parentes e amigos para parafusar a perna e abrir a artéria da irmã, tendo sabido ainda que, para fazer trabalhos tão complexos, o ortopedista e o angiologista recebem do SUS honorários vergonhosos. Pobres médicos!
Quantas Joaninhas passam por esse martírio neste Brasil, cujo governo arrecada 37% do PIB em impostos e quer arrecadar ainda mais?
Gravíssima, nestes dias, é a ameaça de cortar e redirecionar as parcas verbas da saúde para outros programas, como o Fome Zero. A imprensa está repleta de depoimentos de especialistas denunciando que, em uma situação calamitosa como a atual, tirar recursos da saúde é um crime inadmissível e inaceitável. Que os parlamentares atentem bem para o que vão fazer com o Orçamento de 2004!


Antônio Ermírio de Moraes escreve aos domingos nesta coluna.


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