São Paulo, quinta-feira, 26 de novembro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES


República e democracia

MARCO MACIEL


Acredito que é hora de aproveitarmos este instante para pensarmos o país, o seu povo e as suas instituições


O IDEAL republicano entre nós sempre foi indissociável da democracia. Nabuco de Araújo, que tanto e tantas vezes serviu à monarquia, 20 anos antes da proclamação da República, denunciava da tribuna parlamentar: "Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a existência do sistema representativo: o Poder Moderador pode chamar quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição; porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí está o sistema representativo do nosso país".
No prefácio do livro de Raymundo Faoro, "A República Inacabada", o jurista Fábio Konder Comparato lembra que, "a partir do término da Guerra do Paraguai, a ideia de democracia, ou de república democrática, foi rapidamente expurgada de suas conotações subversivas e passou a ser invocada de público, não obviamente como soberania popular, mas como justificativa retórica da autonomia política no plano local". E acentua: "Democracia e expressões cognatas, como solidariedade democrática, liberdade democrática, princípios democráticos ou garantias democráticas, aparecem nada menos de 28 vezes no Manifesto Republicano de 1870".
Quando, como agora, rememoramos, comemoramos e celebramos as conquistas de mais de um século de práticas republicanas em nosso país, é indispensável e conveniente lembrar que a proclamação da República não se cingiu a mudanças no sistema de governo. Vivemos em 1889 uma revolução cujos resultados significaram uma transformação radical de nossos costumes e práticas políticas.
Mudamos a forma do Estado: da modalidade unitária, passamos a configurar o país como uma Federação.
Transitamos do sistema de governo semiparlamentarista para o presidencialista. Da mesma forma, passamos de um Estado dotado de uma religião oficial para um Estado laico.
Superamos assim o regime que, da tribuna do Parlamento, Nabuco de Araújo chamara de absolutista. Passamos por dificuldades, enfrentamos insubordinações, revoltas, rebeliões, revoluções e movimentos armados de toda natureza. Padecemos o fechamento do Congresso em mais de uma oportunidade. Nossos percalços se acentuaram na medida em que enfrentamos crises econômicas, tensões sociais e conflitos políticos e ideológicos. Mas, em todos esses momentos dramáticos, em que os princípios democráticos estiveram em jogo, a integridade republicana jamais esteve ameaçada.
Aliás, sobre o tema, o publicista Gilberto Dupas observou: "Embora seja possível utilizar "res publica" como a expressão latina genérica para indicar o Estado e suas formas de governo, antes de tudo ela significa "coisa pública". Povo deve ser entendido aqui não como multidão reunida, mas como sociedade organizada em torno da comunhão de interesses e da busca da justiça mais ampla possível. (...) Os revolucionários franceses foram influenciados pelo conceito de república de Montesquieu, uma espécie de "modelo moral" de Estado ideal; portanto, um Estado como "deveria ser'".
Norberto Bobbio, no "Diário de um Século - Autobiografia", observa que: "(...) já o dissera o velho Montesquieu que o fundamento da boa república, antes mesmos das boas leis, é a virtude dos cidadãos". E, em pregação incessante pela implantação da república em Portugal, Antero de Quental sentenciou na obra "In Prosas": "Quem diz democracia diz naturalmente república. Se a democracia é uma ideia, a república é a sua palavra; se é uma vontade, a república é a sua ação".
Gilberto Freyre sempre qualificou o tempo como "tríbio", ou seja, marcado por uma interposição de presente, passado e futuro. Não podemos deixar de ter sempre presente que algo do passado habita dentro de nós e, igualmente, há sempre a presença do futuro a nos conduzir.
Daí por que acredito que é hora de aproveitarmos este instante para pensarmos o país, o seu povo e as suas instituições.
Não somos um povo sem defeitos nem vivemos num regime acabado. Temos carências a suprir, temos obstáculos a superar, temos fragilidades a corrigir, temos desigualdades a vencer. Mas temos como legado das gerações que nos antecederam uma legenda de paz, de concórdia e de tolerância que é um dos mais expressivos traços de nossa nacionalidade.


MARCO MACIEL, 69, é senador pelo DEM-PE e membro da Academia Brasileira de Letras. Foi vice-presidente da República (1995-1998 e 1999-2002), ministro da Educação (governo Sarney) e governador de Pernambuco (1978-1985).

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