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JOSÉ SARNEY
Tolstói, um centenário
Há cem anos morria Tolstói,
na pequena estação de Astapovo, de uma pneumonia que
pegara no terceiro dia de sua
fuga de casa, no frio do inverno russo e da terceira classe do
trem em que viajava. Fugia no
desencanto do fim de sua vida, quando abandonara todos
os valores que construíram
sua celebridade como escritor,
para fazer uma peregrinação
tão intelectual como corporal,
em que não sabia bem onde
queria chegar, carregando
ideias de pacifismo, negação
de si mesmo e uma revolta interior que lhe faziam voltar à
sedução do anarquismo.
Quando visitei a URSS, em
1988, quis incluir no meu programa uma visita à União de
Escritores. O mundo inteiro
procurava decifrar a "perestroika", a "glasnost" e os rumos a que elas levariam o baluarte do mundo comunista.
O seu presidente era Vladimir Karpov, considerado o
maior autor de novelas históricas dos tempos modernos,
com sua bagagem de personagens da história da Rússia, onde o regime se encarregava de
condenar ou reabilitar seus
heróis. A sede da união era um
velho palácio.
Comecei a conversar com
ele e logo me aventurei a perguntar como iam as relações
com o regime e como a poderosa literatura russa aguentara os 70 anos de silêncio.
Ele, calado, levantou-se,
abriu uma gaveta de sua mesa
e, num gesto vigoroso, me respondeu: "Mas as nossas gavetas estão cheias". E acrescentou: "Esta casa tem um símbolo, nela morou Tolstói".
Em sua companhia, subi
uma escada em caracol e demos num salão grande, já pintado de cinzento, com ar de
abandono. Meus olhos não o
olharam assim. Vi o salão de
luzes e brilhos, o fausto da nobreza daquele tempo e, no
meio do salão, o conde
Vronsky levando em seus braços a mais bela entre as belas,
Anna Karenina. Foi aquele salão que Tolstói descreveu na
cena em que sua heroína iniciava a trágica paixão que lhe
motivou a vida. Anna Karenina jamais existira, mas a imponderável força da literatura
foi capaz de torná-la eterna.
Desci com toda a história reconstruída, e foi como se tivesse conhecido naquela tarde a
grande e bela mulher.
León Tolstói achava o Estado opressor, e suas ideias de
resistência pacífica inspiraram Gandhi. Ele largou tudo
para voltar à simplicidade,
barba comprida e branca, roupa de camponês, botas longas
e um cérebro que deu ao mundo algumas das obras fundamentais da literatura.
Iasnáia Poliana, sua propriedade, onde escreveu por
seis anos "Guerra e Paz", é um
dos centros de peregrinação literária do mundo. Todos procuram entender esse homem.
Morto há cem anos, é um mito
que espera ser revelado e jamais o será. O governo russo o
despreza. O Ocidente o venera, e, nós, leitores, o amamos.
JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta
coluna.
jose-sarney@uol.com.br
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