São Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A igreja e a nova Reforma

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Em 31 de outubro de 1517, Lutero afixou as suas 95 teses na porta da igreja de Todos os Santos, em Wittenberg. O Vaticano pouca importância deu ao fato. A verdade é que se estava então a iniciar o movimento que até hoje mais abalou a igreja: a Reforma.
O escândalo da pedofilia e da efebofilia que avassala a Igreja Católica dos Estados Unidos tem sido tratado pelo Vaticano como um acontecimento circunscrito ao "excepcionalismo americano", produto de uma comunicação social hostil à igreja -e sedenta de sexo- e de uma sociedade dominada por advogados obcecados pela rapina das indenizações. Será esta a história toda do futuro? Impossível de dizer.
Quem lê os jornais ou vê televisão nos Estados Unidos chega facilmente à conclusão de que a Igreja Católica não tem nesse país o poder que tem, por exemplo, na Europa ou na América Latina. Implantada com os imigrantes irlandeses em meados do século 19, a Igreja Católica dos EUA conheceu, ao longo do século 20, um grande desenvolvimento, mas a sua implantação social foi sempre superior à política, e até hoje só deu ao país um presidente, John Kennedy.
Sendo uma igreja que se tem mantido distante das cruzadas mais recentes da política norte-americana, sejam elas a Guerra do Golfo, a política pró-israelita, a luta contra o terrorismo ou a pena de morte, é uma instituição politicamente vulnerável e os seus inimigos não deixarão de capitalizar o seu descrédito. Se esta for toda a história, o Vaticano pode minimizar e descansar.
Não creio, contudo, que o seja. O excepcionalismo americano tem, nesse caso, mais a ver com a forma do que com o conteúdo. O que se passa na igreja norte-americana é a versão dramática de um mal-estar moral e institucional que atravessa todo o mundo católico. Tem, portanto, um potencial antecipatório.
O mal-estar se assenta em dois fatores principais. O primeiro é a falência, cada vez mais evidente, de um modelo institucional autoritário e arrogante, que não aceita a efetiva participação da comunidade dos crentes na governação da igreja, da gestão pastoral à gestão financeira; que se assenta no "secretismo" e na opacidade, servindo-se para isso de uma interpretação manipuladora do pentecostes; que se vangloria do privilégio da "ignorantia affectata" -o poder de invocar a pretensa ignorância a respeito da má conduta de bispos e padres para tornar possível a combinação de cumplicidade com impunidade.


Aos milhões de católicos que nunca se deixaram reduzir à condição de rebanho, é claro que a igreja precisa de reforma


O segundo mal-estar reside na misoginia ancestral, que é cada vez mais intolerável. São hoje muitos os historiadores que interpretam a imposição do celibato, a partir do século 12 e dos Concílios de Latrão, pelo medo do Vaticano de que os filhos dos padres viessem a herdar os bens da igreja. Como quer que seja, ela não tem nenhum fundamento dogmático e foi por isso que ela sempre tolerou a duplicidade.
Enquanto a igreja do Norte da Europa interpretou a imposição do celibato como total renúncia ao sexo, a igreja do Sul da Europa, da América Latina e da África sempre fez a distinção entre casamento e sexo e soube, com isso, fazer respeitar as governantas das paróquias.
Com o Concílio Vaticano 2º, a outra presença proibida às mulheres, a do sacerdócio, avantajou-se como um dos outros sinais incompreensíveis de imobilismo. Quarenta anos depois, se se deram alguns passos neste domínio, foram passos para trás.
O escândalo da pedofilia e da efebofilia pode ter dois impactos de consequências imprevisíveis. O primeiro será a redução da sexualidade dos padres e bispos à pedofilia e à efebofilia, uma redução particularmente fácil numa sociedade puritana como é a norte-americana. Esta redução, a imperar, será mais um dos sinais da falência moral da Igreja Católica norte-americana. É lamentável assistir à retirada do arcebispo Weakland, de Milwaukee, um dos prelados mais lúcidos e progressistas dos EUA, apenas porque lhe foi descoberta uma relação homossexual com um adulto.
A outra consequência imprevisível do escândalo é o fato de a comissão de leigos nomeada para investigar os abusos sexuais de padres e bispos ter poderes para denunciar os casos às autoridades civis para procedimento criminal. Esta competência se choca com preceitos do direito canônico, sobretudo no que diz respeito aos bispos. Qual vai ser a reação do Vaticano? E a dos fiéis?
A igreja dos EUA é das que mais dependem das doações dos fiéis e estes dão sinais de não estarem dispostos a que as suas contribuições vão parar nos bolsos dos advogados.
A pedofilia e a efebofilia não têm, aparentemente, nada a ver com o "sacro negócio" da compra e venda de bulas e indulgências, o rentismo transcendental que tanto revoltou Lutero. Mas, no fundo, estamos diante do mesmo abuso de uma posição de autoridade privilegiada, que trafica com a ingenuidade ou a indefensibilidade das pessoas a quem vende Deus para delas receber o corpo e a dignidade.
Não estaremos perante uma nova Reforma. Mas, aos milhares de padres e bispos honestos e generosos e aos milhões de católicos que nunca se deixaram reduzir à condição de rebanho, é claro que a igreja precisa de reforma.


Boaventura de Sousa Santos, 61, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Carlos Vogt: A Fapesp e a riqueza do conhecimento
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.